Fragmentos

NEM TUDO ESTÁ PERDIDO

Estava cursando o terceiro ano de Letras, na Faculdade Católica de Curitiba. Era junho de 1973. Estavam alí as provas do primeiro semestre.

Uma febre violenta tomou conta do meu ser. Fui obrigada a afastar-me da Faculdade durante três meses, por ordem médica.

As matérias iam se acumulando, cada dia que passava.

No dia 30 do mesmo mês, apareceu no Instituto um rapaz voluntário, oferecendo-se para ler e gravar matérias para os estudantes cegos. D. Paulina, administradora do Instituto, conduziu-o até o meu quarto. Logo nos tornamos bons amigos. Nossa amizade foi crescendo e nascendo entre nós uma confiança mútua.

Descobri então que ele era um moço de sentimentos nobres, mas cheio de dúvidas e incertezas. Era da classe média. Tinha um lar bem constituído, porém havia deixado tudo e ingressado no caminho das drogas. Seu mundo era a cocaína e outros produtos congêneres. Tinha somente o científico completo. Abandonara seu trabalho na rádio e os estudos.

Encontrou em mim o refúgio dos problemas que o cercaram. Tirei partido disso, aproveitando para uma troca de trabalho. Enquanto eu tentava afastá-lo do vício, ele me dava a luz dos seus olhos ajudando-me nos estudos.

Não resolvia nada pedir para deixar de tomar drogas. Tinha que achar um jeito de agir sem que ele percebesse minha intenção. Comecei a prendê-lo mais horas ao meu lado, lendo e gravando. Porém, achei que isso não era uma boa solução. Ele podia cansar e desanimar da tarefa. Pedi então que ele me levasse a teatros, cinema e até em jogo de futebol. Quando tinha um jantar que era obrigada a comparecer, convidava-o para acompanhar-me. Assim, já ia ganhando o terreno, pois as horas que estava comigo não estava com as drogas.

Depois me ofereci para acompanhá-lo nas rodas de seus amigos, pois era muito importante para mim conhecer novas pessoas e fazer novos amigos, para ter sempre com quem conversar. Assim, nunca ficaria só, fechada na minha falta de visão. Concordou comigo, mas disse que era muito perigoso. Eu respondi que não tinha medo, porque ele estava do meu lado e me livraria de qualquer perigo.

Ele, quando estava comigo, não tomava nada ou bebia muito pouco. Um dia me disse: "Já faz um mês que tomo menos comprimido. Fico tão ocupado com você que nem tenho tempo para isso. Você está sendo o comprimido mais forte em minha vida".

Eu fiquei feliz, mas disse-lhe que não abandonasse de repente os comprimidos. Podia ser um entusiasmo apenas com o meu problema e depois seria pior voltar ao uso da droga. Aconselhei-o a tomar meio comprimido até esquecer do vício. 

"Eu gostaria de que você recapitulasse as apostilas do cursinho de português, na Faculdade". Assim fizemos. Fui até o Curso Camões e adquiri todas as apostilas de Comunicação. E começamos a estudar. No fim do ano, para minha surpresa, ele me disse: "Resolvi fazer o vestibular de Comunicação. Quero ser jornalista. Sempre sonhei em ser repórter, mas nunca tive coragem de enfrentar um vestibular. Mas agora eu tenho. Você me mostrou que nem tudo está perdido. Você perdeu a visão e encarou a vida de frente, sem desanimar no meio do caminho. Eu tenho tudo para ser feliz. No entanto, procuro e felicidade num mundo irreal, num mundo de fantasia das drogas, onde irei encontrar só a infelicidade, a minha destruição, quando ainda posso ser feliz".

Confesso que chorei de felicidade, porque a minha deficiência visual serviu para alguma coisa. Alguma coisa útil na vida de alguém.

Ele fez as provas do vestibular e passou em segundo lugar. Cursou os três anos de Comunicação. Hoje está trabalhando naquilo com que sonhou, ocupando cargo importante nos meios de comunicação.

Ele está formado e eu também com ajuda de seus olhos. Por isso eu digo que nem tudo está perdido na vida. Este moço se recuperou pela própria vontade. Está casado, vivendo num lar feliz.

Nem tudo está perdido, quando existe boa vontade. Não ajudei em nada. Ele mesmo se ajudou, me ajudando.

Obrigada, amigo, por me haver dado a luz dos seus olhos, em cada página dos livros. Obrigada. E creia que a sua voz está gravada para sempre na fita da minha memória.

Sei que nem tudo está perdido, enquanto houver compreensão entre os homens.

 

(Retirado de Um rosto perdido na multidão, 1981)