Fragmentos

 

O homem que cai

 

Está a ponto de voar
Amarre as asas no corpo
Enrole inteiros os braços
Como se fossem asas presas
E mergulhe de cabeça
Bem longe dos pensamentos

Lâminas finíssimas sobre os pés
A dor sobe até o coração e dispara
O mínimo na palma da mão
Pronto para voar e - quando interrompido
Não somente esquecer o desespero
Nada haverá nada a esquecer
Encha de água os pulmões
Repire o ar antes que seja fogo
Aperte o cano da respiração
Voe aceleradamente até o chão

Isso tudo para não continuar
Para não ver o próximo canto
Se transformar em grito
E depois?
O que fazer com o invólucro maldito?
Lançá-lo aos bichos?

Até que tudo passe e a vida permaneça viva

Lamentamos muito
Estamos inconformados
Profundamente tristes

Um último pedido
Que a vida viva e seja vista
Não se deve esconder a vida
Nunca guardá-la dentro dos sótãos
Ao sol os gestos são mais livres

A ponto de voar
Agora já está indo
E o que ficar, seja leve e doce
Um instante depois do outro

Disponível em:  http://cecinest.blogspot.com.br/2014/12/o-homem-que-cai.html

 

um estranho que me quer

 

A grana estava bem curta aquele mês. Precisava conseguir o suficiente pelo menos para o aluguel. Mas não pintava nenhum extra. E o dinheiro do pagamento, assim que caía, escorria todo em contas emergenciais. Havia já um tempo que não comprava uma  única roupa nova Sempre aquelas de sempre. Os sapatos, pior ainda. A sola gasta não mantinha sequer a dignidade do passo. Não sabia mesmo lidar com grana. Essa era a verdade. E dinheiro que vinha difícil, ia fácil. Talvez se tentasse o contrário... Uma grana que viesse fácil, ficasse por mais tempo. Mas isso era impossível. Grana fácil só para quem já nascia com grana. Isso deixava ela puta. Meio do mês e aquela aflição de pobre estourando no meio do peito. Insônia e taquicardia. Tinha que dar um jeito. Pensou isso esfaqueando muitas vezes o suco de maracujá com o canudinho. Até que seus olhos flagraram o carinha de terno que não tirava os olhos de cima dela. Essa agora! Pescou uma nota de cinco solta dentro da bolsa e acertou o lanche. Na saída da lanchonete, uma chuva torrencial disparou no meio da tarde e ela sem guarda-chuva. Má sorte, tempo ruim. O carinha de terno se aproximou dela e sacou num golpe de herói um enorme guarda-chuva daqueles pretos que os ambulantes vendem por uma merreca em dias assim. Nem se ela quisesse podia comprar um daqueles agora. Sorriu sem graça esfregando as gotas grossas que já molhavam todo o seu braço. Está indo pra que lado? Perguntou o rapaz. Pra os lados da minha casa. Ela respondeu sem perceber que não fazia muito sentido o que disse. É pra lá que eu vou. O moço devolveu com certo humor o que ela dissera.  Aquele terno não devia ser barato. Num instante passou pela cabeça dela uma possibilidade de arrumar a grana pro aluguel. Por que não? Uma grana fácil. E para o que estava disposta não precisaria de roupa nova. Aliás, não precisaria de roupa alguma. Topou na hora.

 

Disponível em: http://www.escritorassuicidas.com.br/edicao38_1.htm#assionarasouza38

 

[...]Para se construir um país decente em que as pessoas vivam em paz 

é urgente assassinar esses anormais

Esses que querem avacalhar com a ordem familiar

Esses que querem adulterar o que a natureza determinou

Esses que querem tirar do macho o poder de conduzir a fêmea

Tudo começou a ficar assim com a chegada dos anormais

Antes havia silêncio e a ordem reinava em todas as ruas

Os bois eram mortos num abatedouro afastado da cidade

E a carne era toda acondicionada em bandejas de isopor

Os cortes bem arrumados nas prateleiras dos supermercados

Depois que as vísceras do bicho foram exibidas

Era urgente encontrar o assassino e quem ousasse defendê-lo

Os açougueiros mais antigos da cidade foram convocados em reunião

Só eles eram capazes de assassinar quem mostrasse o boi sendo morto

Afinal era uma prática secreta e destinada a alguns escolhidos

Com as mãos sujas de sangue protocolaram o tratado de paz

Quando o martelo erguido batesse sobre a mesa

Começariam as execuções.

 

Disponível em:  http://cecinest.blogspot.com.br/2016/03/carta-aos-surdos-para-uso-dos-que-ouvem.html