Fragmentos
educandário
a página em branco de meus poemas
a todos que tocaram este altar
nossa mãe do céu!!
dá uma vontade de chover devagarzinho
neste quadro antigo pendurado na sala da minha alma
a sala principal
com cadeiras pra receber os amigos
a tinta úmida escorrida sempre mais pra dentro
as pessoas passando apressadas
não sentem mais o cheiro de eucalipto
nem se comovem com seus abraços
ahh!!! cada canto teu!
saio vestida com o espanto fabulado dos sonhos
o pretérito mais que perfeito assobiado no meu ouvido
em harmonia atravessada de rios antigos
adocicados como o vinho em cristais...
estranhíssima tinta
talvez eu nunca tenha saído muito longe das sombras destas árvores
que se enraizaram no peito
amor eleito
enroscado em mim o silêncio ruidoso dos pátios que caminho
o tablado em que me encontro nas horas de despir-me das que sempre fui...
os livros incandescentes enfeitiçando os passos dançados
dos tempos que me acompanham ao interminável desejo de pertencer
não sei se caibo em algum lugar
mas este lugar mora em mim...
eternamente
o tempo no espaço
há noite e cimento no meu olho de vidro
à noite, o silêncio é maior que o rugido
a manhã cimenta o grito cristaleira
eira renovada a sol por sal
outras canas canais abertos
missões para as missas
miadas de certa moagem
têmpera
ela roga entre escândalos dos sândalos
que exalam de seu rosário
raízes misericordiosas que se enovelem
por todos os segredos
tato intacto alma nua concreta pra ele
a cintilância que se curva ante o amante
todo despertar é fiança enfiando-se
na agulha do tempo desfeito de amor
aço da têmpera costurada
de esperas
artesamavam-se
artesanavam-se
lamas chamas pedras
aos tijolos dos olhos
pá lavra cal ar: água
amolecidos sob
o mutismo da tarde
barro e tinta assobiando
pássaros com casas nos bicos
argila para os sentidos abertos
janelas – sol no peito
escancarado entre os galhos
da árvore antiga
do anti-dizer e ser
janela
desejo maravilhamentos
sonhos nas casas sem peles dos abraços
felizes anos-luz por dentro dos nós
sementes espreguiçadas nos olhos
beijo na mão esquerda do amor
intacto e indelével
levantando a saia da vida
atrevida e miúda que nos espera alvoroçada
alvoradas pássaras
ao devir!
ave
na parábola dos meus nervos
raivosos de seiva e sombras
grafas ramos invisíveis
engravidados de raízes
arbustos plenos indecifráveis
balé de braile em lanças surdas
sobre a madeira que me veste
tuas palavras tatuam meu corpo
circunscreves no umbigo lenhoso
nódoas de entardeceres rosas
ainda úmidas pelos versos
escorridos dos teus lábios
há um livro teu em cada poro meu
dança selvagem de galhos
orvalho na pele da palavrardente
são lágrimas melífluas
futuros caindo sobre o tronco nu
adivinhações de omoplatas escorregadias
plantas de pés resvalantes
uma semente vertida
miríades de diamantes
no silêncio bendito
leia pétala a pétala
e milagres florescem
no agreste desinventado
por tua língua
imantada na minha
saliva nossa
amém
concreto
lambe-a inteira pra sempre
morde sua liberdade
entre as arquiteturas versificadas que construírem
de aço e pó
come-a com a farinha dos dias
caídos da mesa
mas não venhas beijar minha boca
salivada pela tinta fresca das horas
extraordinárias
pra enrijecer teu poema concretíssimo
lux
um homem constrói sua mulher
pela beira de si, pilares
altares de singelezas
arquitetados de aleluias
por milênios dentro
dos momentos
acende colunas e
tonifica músculos
no peito aberto
para o sempre
inventa hélices
alianças
amálgamas
assim
eternamente
apalavrados
– no franco
caminho
de seus corpos –
despertam a linguagem
intraverbal
que os ultrapassa:
“nós
nos
vivemos”
samba
lua é pandeirola percutida
no vão da noite incendiada
salto muito alto arrastando o tempo
no molejo melado des com passado
ela, sua, vê...passa a língua na sola
ella, sola, mientras no se olvida... oye
pontinha do instante
tenho uma toalha na cabeça
e uma ampulheta entre os dentes
chove dos fios aos vincos
quando corto a boca
e piso nas areias
lambuzadas do sangue
timbrado dos enganos
que engatinham
na pontinha do instante
que está ouvindo
ou vindo?
as grandes metáforas
para alcançar Ícaro
é preciso uma dose de pícaro
por dentro dos céus de Zeus
há cento e um camafeus
acima da alcova de Hades
lambidas e castidades
desde os mares de Poseidon
dançam caóticos semitons
contra a revolta de Ares
não há quem nos ampare
o que se apreende de Hermes
é fértil e goza de verve
por todos os lados de Hera
madrugam rasgadas quimeras
de tantos limites de Cronos
surge a destruição dos tronos
sobre as imperfeições de Afrodite
não há quem acredite
quem esperou Prometeu
se fodeu
por um triz
quando ele me pega
fora de cena
escorrego no sol raiado
rosa-dos-ventos hasteada
leque tremeluzindo tod’água
vida é segurar por um triz
transversando
enfiando e fiando
a tração sobre os nós
havia sóis
entre os dedos escorregadios
eles se esparramavam
pelas camisetas brancas
das crianças pretas
respingadas de laranja nas beiradas...
laranja era a cor de seus sonhos
que traquinavam dentro da biblioteca
toda de vidro
chamada Carlos Drummond de Andrade
mas só conseguia lembrar-me de G. Ramos
e da purificação da escrita
uma biblioteca envolvida em vidro
incitava fantasias de transparência
toda aquela claridade...
quanta luz poderia atravessar o espaço?
naquela parte tão franca
pensava em sujar palavras
rasurá-las, cuspir nas palavras...
era bom vê-las manchadas de gente...
a palavra alaga
a palavra alastra
a palavra gasta
a palavra apaga
a palavra lavra
não interessava a palavra enxuta
mas pingada de caos
soprando assaz às asas do verbo
enquanto um passarinho pisava destro
sobre os galhos da árvore amarela
abria e desabria asas
quando é dia, desaba a palavra
enlaçada na agulha riscada pelo vinil antigo
quando é noite, ascende a palavra aberta
a palavra aberta sangra?
a palavra assassinada
há um vão em cada letra
no peito do poema
há uma palavra morta
lembro-me dos sorrisos esvoaçantes
sacodindo os olhinhos amanhecidos
de silêncio e nuvens pintadas
nos jardins dos instantes
dentro do alvoroço das idades
cintilavam vazios coloridos
há versos pretos no meio da rua
resvalados pelos passos da noite
há versos pretos no meio da noite?
há versos brancos no papel
esbaforidos de meio-dia
versos brancos caminham de dia?
os versos incolores vagueiam por onde?
a bênção àquele lugar
vinha da frondosa mangueira...
onde, pela primeira vez li Paulo Freire
enquanto miúdos brincavam de sol
até espatifarem-no numa vidraça
amarelecimentos escorridos nos cacos de vidro
estilhaços incandescentes aguilhoam
dedos dos meninos
no mais, enublações
cidade sem luz
- se for cristal, chuta
nunca mais houve domingos
No meio da terça
alguém grita lá do fundo do pátio-presídio. – é apenas um aluno!
alguém grita aqui do raso da vida. – é apenas um professor!
- porra!!! sou eu quem grito!!! – disse ela.
Mas as pessoas que estavam ali
não olham nos olhos do desespero
porque as linhas tortas deste rosto antigo
são doses amargas e incessantes de veneno
uma torneira aberta da qual a gente finge não ouvir
a gotinha açoitando a ferida que nunca cicatriza
conivência afiada = canivete-pivete
tambor de um só tempo para a mola real
marcha militar esfolando as peles desapiedadas
de biografias preteridas
porque não havia domingos
flagrantes colheitas de uma terça de abril
aos 4 anos, com medo de envelhecer, Gustavo pergunta:
— tatá, a sola do meu pé ainda tem cheiro de mel?
a vida pode ser mais açucarada do que a raiz
ladrilhada das inaugurações solares?
esse é o aroma da nitidez?
farejando a pulsação vigorosa
das bem-aventuranças
os sentidos paridos pela urgência
insurgente
captam o brado sóbrio e elegante do infante:
— eu acho que já virei gente!
o que viria antes disso? o que virá depois?
e as gentes rodam rodam, mas demoram a se tornar.
glórias às crianças, que viram e veem!
das conjugações
o Mar umedece:
- Mãe, olha meu milagre! é de verdade!!
a luz encharca os que veem os segredos das fadas
deslizantes no tobogã ascendente
dos olhos pueris
poeira de estrelas
ele cria...
você crê?
ele se leva
Diego
pinguinho de gente
gota de tinta fresca
joia, pingente
semente, fruto desta
casta, casca sacra
gema valente
milagre que acende a festa
ele se leva de encompridar nos gestos
e me lava a rir de mil modos trans#bordados
seda com pontos ora frouxos ora apertadinhos
entre um lado da espinha e outro vazado pelo olho esquerdo
ascende para o voo ornamentado na estação de cor da bamba
aperta meu bico como se sugasse o elixir do amor
e o amor é esse alto da colina, por onde sai leite, água, calor dentro do abraço
para onde se vai no instante do querer precisar
ele se molha ditoso fazendo algazarra com as lágrimas da água
caem gracejando todas de sua pele nuvem propícia
ele pisca como se beliscasse a quinta nota a ser burilada
cata-vento do tempo a ser feito por seus dedos miúdos
pés são pães frescos a ensaiar os passos
ele grita aleluias e nascem hojes dos seus olhos e poros
o caminhar é esse levar-se que me deixa à sua espera
sou a espera e auxilio os primeiros passos da esperança
esse corpo afoito e novo que desconhece a imperfeição
veio a humanidade adivinhando
essa pessoa toda pureza tem os braços abertos e eles são
certeza de alcançar o sublime e vai tocando
ele ri como se descortinasse as janelas esvoaçantes dos peitos
tímidos desembrulhando a fé como presentes inventados
ele é meu poema mais concreto e nós somos imagens projetadas
em anagramas rearranjando palavras para um lirismo melhor
um mar de lama assola como quem ama
lambe tudo o que era [ ] borracha nas construções
ele é argila magia a ser manipulada com poções do pó de ser
e há
às crianças de Alepo
por favor, chorem por nós
os desgraçados
chorem por todos os tolos
uma lágrima que seja
como um destroço de tudo
o que têm visto e desvisto
por todos os fantasmas
o monstro é esse carregar
desumano de desenganos
em ganos secos inférteis
como a varinha desengonçada
de feitiços emocionados de sangue
e pó
um dó, Senhor, a quem nota
a miséria de todas as nossas
almas
um dó maior ainda às crianças
que nem chover podem em si
é preciso calar
é preciso calar os silêncios
inflamando as urgências
é preciso colar
as distâncias
é preciso colher
pra cada fome secreta
é preciso colher
o que plantou seu pé
cada calo é
escrito em língua morta
Do livro : a palavra é
BAJO, Beatriz. : a palavra é. Ed. Kan e AtritoArt. Londrina-PR: 2010
V
todo toque é ânsia
ganas de extenderse en el otro
inverter-se
reverter-se
imantar os meneios nos seios do mundo
que inaugura os solos férteis
das terras alheias do mim
sólos
nosotros no existimos
fora dos espelhos que salivam
os ramalhetes
nada mais são que
braceletes
iridescente amplexo de primavera
no verso mais abotoado do ser com o sempre
todo madrepérola
calcária lembrança
que concebeu o amor, gema de timbre específico
atingindo a frequência
honesta da esfericidade singela que embala os vínculos
na cadeira de manso tremelicar
que aprende a certa dedicação
ao tempo de não desejar
em marfim
revelando películas en negativo
hasta los séptimos rascacielos
de peligrosos adornos
hechizados
por los señales
do latim ensopado
de arremessar sentidos
para todos os ouvidos
no colo do fim
da imperial tessitura
na teia de toda lisura
que permanece
carmim
VIII
quando há chamas na lança hasteada
qualquer singeleza
é pavio
vence o rumor fricativo de todos os sinos
no cio
nocivos solares
sola-firmamento
o andar é cimento de si
casa pra fora
o pé é
medida exata
de ventana abierta por lo siempre
que sigue con panoramas renovados ininterrumpidamente
a cortina imita uma água viva
cayendo por el agujero
dos mais sinceros melindres
que alcançam o tornozelo
dobradiça de lucidez que atiça
profundidade molhada
que se precipita por medio del encantamiento
cábala sob el tapiz
evocando os mais brutais silêncios
por onde terça a planta
que prospera divagando
como a fera
bajo la luna
ferradura
que engravida seu passo
rasgando os papéis de mansinho
como si
echase sello en los suelos de los laberintos
llanto de río encurtido
refrescando pegadas
de todas as sanhas que fabricam
música de calcanhar
que mancha ritmos
advindos do fogo sagrado
que pisa no céu
mero telhado
coberta de
planos oblíquos
vertidos pelos bicos
do mais permanente
entardecer
Do livro a face do fogo
BAJO, Beatriz. a face do fogo. Ed. Annablume – coleção Demônio Negro. São Paulo: 2010
Depoimento
ler-te é outra vez te ter bem perto
sinto-te em lamento
palavras de antes,
borradas do sangue que
de
r
r
amas
pela alma
abaixo
sobre as linhas de teus cadernos secretos
gozo de encontrar-te por entre os versos
das minhas esquinas que cruzam teus contos
árvore branca
...é ao caminhar que se catam pedaços de vida. Como se na quietude do passo, aproxima-se a um espaço ainda não percorrido para dentro. Quanto mais se anda mais se entra. Mas não me dava conta disso ao praticar a flânerie de meus anseios de mais vida. Era uma busca pelo corpo saudável para purgar a nicotina das noites em tragos. Sete voltas pelo aeroporto assim como quisera pisar numa asa por descuido para que os pés chegassem, acaso, onde sempre esteve minha cabeça. Quiçá o objetivo fosse, realmente, esse de cuidar por um equilíbrio insano de lançar-me aos céus inteira e comungar com sonhos de pássaros. No entanto, não dei por esse juízo e permanecia às voltas, como um cão, atrás do meu rabo para que pudesse dirigir com habilidade minha fantasia de voo. Acompanha-me sempre a maternidade porque necessito do pertencimento em meio à orfandade da rua para tornar-me mais complacente e misericordiosa. Também para religar-me à eterna gravidez das calçadas. E assim caminho à margem. Testemunha ocular de sempre em redoma com meu passo à beira. E dessa vez em que tropeçava em minhas nodosas raízes, a árvore branca me encontrou. Branco o meu desejo de tarde grisalha. Retrato de nuvem. Brincava de nevar comigo em pálido sorriso, quase líquido. Babava em pétalas. Distraía-me de encostar meus pés ao chão. Vacilava de terra pisando em pedaços de seu leite floral. Escarnecia-me quebrar galhos sem rimas em nossa conversa ramificada. Um pano de fundo enciumado se rompeu em antiga lágrima que me grita. A flor branca entrou sob os tênis de pés apressados em não ver. No terceiro passo, virei-me na tentativa de adiar a partida ou — quem soube? — despedir e voltar ao entorno. Não a enxerguei. Porventura jamais a alcançaria novamente. Um poste, uma nuvem, talvez um desejo.
fogo-fátuo e os cordéis de encantamento
Era rua agora. Bisbilhotices em roda de gentes pela casa da comadre. Minha mãe infiltrou-se na residência como um falcão peregrino, fazendo levantar os vestidos atrevidos das vizinhas e a surpresa despeitada dos homens que tumultuavam pelos arredores da casa. Foi então que a estupefação alcançou suas pernas quase cedendo o chão aos joelhos. O desespero enlaçado entre mãe e filho, amplexados em meio à cena aterrorizante.
Eu tinha uns 6 anos, lá no início da década de 60, quando iniciei a minha coleção de histórias de família nordestina. A grande migração para sampa advinha do auge da construção civil. Cada tijolo era um parágrafo dos grandes contos edificados em cimento e ped-aços de grades que começavam a arranhar o céu da minha cidade que já se acinzentava.
Eram de Recife João e Virgínia — paulista que se preza metonimiza torpemente todos os nordestinos a baianos — e, como rochedos à flor da água, abeiraram-se na rua perto da cachoeira, ou seja, próxima a nossa casa. O homem de vincos em torno dos olhos, como se tivesse observado a vida com firmeza aguda, carregava a aspereza da mão que prepara o chão da alma, montando o teto das ideias e erguendo as paredes que direcionam os desejos alheios. Tinha como ofício amassar barro o pedreiro; ela, senhora da casa, arriscava-se às contas e aos pontos que se costuravam em meadas com fios de fábula a alguma vizinha que carecia de fatos.
Nos arrabaldes encontrávamos e desencontrávamos todos nós, que recheávamos qualquer habitação. Um revisor de jornal que ouvia óperas pelo rádio, distribuía balas para a molecada e voltava sem quinhentos réis para casa era o marido da minha tia, que possuía mãos de sempre fada e nunca dor de cabeça. O casal era pai e mãe de uma filha de maria, a prima de voz acanhada por não ter boca pra nada. O irmão da tia era o meu pai, um caçula de outra grande família. Talvez por isso, planejava uma filosofia hippie de vida, caçava rãs e amava futebol, tinha pernas arcadas combinadas a uma boina. Piscou verde para seduzir minha mãe. Bem, esta era a dona das histórias todas. São através dessas veias que nas minhas corre a fibra das mulheres que admiro. O amor fabricou o primogênito que cedeu lugar para a gêmea da minha alma que me viu aparecer roxa de tudo — resto de tacho — confirmando assim as contas brilhantes do terço da parteira. Assim, Maria. Vim metendo o pé no mundo. Aparecida.
Éramos oito pessoas que descendiam de italianos. Isso significava macarronada aos domingos, conversas atropeladas por muitas vozes e gestos expansivos com as mãos. Enfim, transbordantes e calorosos. Quando dei conta, meu povo era amigo do casal baiano...ops, pernambucano.
O tempo, à espreita, testemunhava o primeiro filho de João e Virgínia assim como nós, que nos deparamos com os olhos acesos de quem principia a buscar, a pele fina porque sem corte e a mudez típica de aprendiz. Josias Valci não combinava com o bebê porque quem ouvia o nome e olhava-o, notava que o menino tinha mais letrinhas que corpo. Seus pais tinham, realmente, um gosto engraçado e extravagante. Fui cuidando de perceber que faziam uma combinação, muitas vezes sem sucesso, de nomes compostos que traziam as iniciais J e V.
Bem, Josias foi dado ao primeiro sacramento. A partir daí, meus tios eram padrinhos e ele afilhado. Além disso, entre os adultos, por conta do vínculo, passaram a tratar-se de comadre e compadre. Muito mais pra frente é que entendi porque mudavam de nome depois da festinha na igreja. Piscamos e os anos passavam grandes, como pulando os degraus da vida.
E quando Josias-homem vinha para comemorar o natal conosco, trazia uma garrafa que, na verdade, parecia com o vinho que a gente tomava (bem, eu saboreava-o aguado e com açúcar) e meus tios enchiam a boca com o tal vermute para falar que ganharam um Cinzano de presente do afilhado. Sempre o padrinho brincava chamando o garoto de lampião e era um acanhamento de bochechas avermelhadas que eu nunca entendia. Josias já tinha mais três irmãos, o JV magrelo de mãos compridas e longos cambitos, o JV cabeça mais chata e Julião Veraldo, o pequeno.
Minha mãe poderia ter seguido muitas profissões, porque nasceu com o dom de adubar o mundo. Além de genetriz e professora da criançada toda da rua, tinha uma mão pra tratar dos bichos que só vendo, ainda comprometia-se como uma enfermeira de primeira. Era ela quem tratava do umbigo das crianças e cuidava da comadre durante as gravidezes e depois dos partos.
Tudo se encaminhava à criação dos filhos que já largaram as mamadeiras há um tempo, embora alguns estavam jogando os dentes de leite no telhado e em outros já se via a penugem de uma barba. Às vezes, na minha casa, que ganhava em quantidade e em mulheres, comentávamos dos hábitos diferentes e do carinho que sentíamos por eles.
Vez ou outra Virgínia era visitada por dois irmãos que vinham da mais antiga capital brasileira. Um deles, lembro-me, tinha o nome de Antônio, um galalau que mangava de todo mundo. De índole extrovertida, dizia sempre “avia xodó” e adorava distribuir cheiros por toda parte. Exibia a sanfona que se curvava toda em gemidos de saudade. Tonho, então, cantava pra irmã um forró que acalorava a rua inteira enquanto os outros dois manos ensinavam o pessoal a dançar o bate-coxa.
Nunca deixavam de passar as festas de São João perto dos parentes da terra da garoa e a espera pela chegada deles era de um entusiasmo de levantar defunto. Virgínia espalhava a notícia pela vizinhança e corria para deixar a casa brilhando. Assim, como era o hábito da época, ela, nessa ocasião, cismou de encerar o chão. Evidentemente, porque era muito humilde, na sua dispensa só havia o necessário, não podia se dar ao luxo de comprar produtos supérfluos com facilidade.
Ainda hoje, angustia-me a recordação dessa cena e do quanto o instante é passível de fatalidades que não se consertam. Em meio ao grande furdunço de vozes e braços e lágrimas do céu paulista, orgulhei-me da coragem de mamãe — foi assim que iniciei minhas concepções acerca da fragilidade humana — ao agir bravamente diante da desastrosa lambida.
Virgínia...bem, com a ingenuidade dos simplórios, na tentativa de que a cera rendesse, procurou derretê-la em lata que ardeu toda de labaredas ágeis em distribuir suas cores. O desespero arremessa a lata ao quintal que veste o pequeno. Julião parecia que corria ao encontro de boitatá. Seu corpo inteiro dominava o fogo que mais se matizava em volta de seus olhos de fera enlouquecida.
A dona da casa que aclarava a noite chuvosa, entre tantas outras que banharam a vila durante a semana, ainda tentou afugentar as chamas e urrar pedidos de socorro. Foi quando mamãe chegou com a lucidez dos heróis para rasgar as roupinhas do menino e enrolá-lo num cobertor. Mas fogo-fátuo, vestido de todo o azul, concedeu o reino da luz a Julião, que era brilhante demais e ascendeu. Apesar de encharcar os corações de sua família, desde então lhes guia com sua claridade de eleito.
A comemoração da festa de São João não foi das mais dançantes na rua perto da cachoeira, mas eu olhava a fogueira com tanta fascinação e podia jurar que Julião ria entre uma fagulha e outra, traquinando brasas noite adentro sob o xote que abençoava as pessoas que teciam seus trapos com novos cordéis de encantamento.
é alma
é alma
a febre de corpo
temor de esquecimento
é alma - junto com a tua -
o voo cai em delírio
@laúde como abraço
leve - em lava - alma
a deslembrança é o corpo a mentir a febre
pintura expressionista
você tem uma agulha na língua
a cada lambida, rasga minha inteireza
e eu, esquartejada, insisto em que
feche os olhos e despedace-me mais profundamente
até tirar-me toda a pele. Assim, posso
inundá-lo completamente com meu rubro
desmazelo de enquadrar-me, sem moldura.
poema secreto
as pálpebras caem sobre as minhas palavras
encastelas pelas tuas
um piscar de olhos é todo silêncio abraçado
cada lágrima é um poema secreto
gota
a
gota a tatuar imagens no chão branco
novas poções, açudes.
pesada
a Mar Ariel
o mar tem um pé que dorme e é avesso
ele o agita com despeito do sono
o que é o sonho do pé? Talvez mais chão
o chão de fabulações em que se
pisa sendo e que não incisa a sanha
mais perto das plantas brotam incêndios
ahh...bom meter o pé no que amanheço
e caminhar sangrando todo outono
que desfalece no dobrar dos joelhos
os joelhos como que íntimas maçãs se
encolhem temendo o abocalcanhar
do que se consome onde permaneço
e mais sangra de lamber o que espiono
as carnes abertas que rasgam o verbo
mais perto das plantas brotam incêndios
onírico é o tempo em que me insiro
tropeçando no que desacredito
e chutando as palavras goelas abaixo
é preciso apressar o pé que dorme
há que se andar
comer borboletas
1/2.
cada beijo é como comer borboletas
para que as matizes de dentro se libertem, se debatam
no assanhar das asas
entre os predicados que traquinam no diafragma
que raia em transversais contrações
ventos adverbiais
1/3.
Assim que se deitou
Sobre meu pé tão delicadamente
Trouxe-me algo de fenda
Algo de talho, latente
Entre os batentes da minha janela
Adentrando pelos basculantes
Roendo os batentes
2.
O dia inteiro nascia dentro de mim
Dança
sempre o que há de mais quente é o que escorre e entra
é que a febre do teu nome avança pelas calçadas
e contemplo a senha
pelas fresta das portas que serão abertas
por pés descalços
enquanto me embaraço em pernas
que procuram arrebatar as fissuras do salto
no chão que espera a dança
e arrisca o vão do asfalto
A ironia da vida está no instante em que se cala.
a
o amor é cheiro doce de almíscar,
quando me sacrifico em gozo sob o sol
azeitando-me na quentura da saudade tua
maldição que entorpece minha carne
crispa a linha do meu tempo, estremece
quero heresias ao pé do ouvido
na minha pele impregna bálsamo
meu Al, significando o que amo
permita-me ser tua blas(fêmea)
meu grito é todo por ti...
e amo do sempre como no silêncio que
lambuza o ventre te queriaconchegado na
primeira nota órfica da minha bolsamniótica
que te conserva neste nosso cenário imperfeito
e insuportável mas docementembrionário que
perdoa insensatez e pode sorrir nos tropeços
te amo do íntimo quando palavrasão
descabidas não se encontram coa memória do
peito dentro da linha preciosa da vida questá
se cozendo entre o tempo e a língua e só sabe a
medida salivada da benquerença desastrada
nascente mordida no sol me incandesce a boca
todo o céu ao revés como na alma um anzol
fisgand o instante-semente na hora do
esquecimento tudo em latente intensidez ainda
com o coração-operário meu amor por ti é
gravidez
o sem-dia anterior para a cura
o posto de saúde é uma caixa de música aberta, tocando tristezinhas em negativos aos olhinhos arteiros das crianças a magreza em lenta e trêmula mão nos documentos, o gorro e a cadeira verde de plástico os avisos de prevenção do corpo, as campanhas banheiro sem papel os vidrinhos quadriculados as conversas fiadas ruídos e tosses as cores o balançar dos pés em desoladora espera - você tem língua? mancar é um estar no quase. raios-x de riscar esperanças e fósforos que não cabem nos bolsos
atrito gravidez
d' sangue e d'água
flor do umbigo
nosso dasein
d' instante
lis-no-peito
o corpo vibra em meio aos segredos gelados dos ventos londrinenses que insistem em atacar os notívagos solitários e assim vai se firmando a intimidade tímida, entre eles e a cidade o tempo trincando ...é bonito o que se conta em palavras que acertam os ponteiros de dentro...ou os faz perderem-se de vez...o entre-quebrando de uma leitura em tempo de corte! ...ventando em quatro dentro do meu quarto...de algumas horas... é inteira a fenda nos olhos que esguicha a vida saberei tirar as vendas de fêmea alma com os resquícios do que tenho acompanhado de mim...lis-no-peito
é que me livro
é que me livro
pelas riscaduras na pele
despudorando o verso
ventre
me livro quando rasuro o tempo
nos poros de mim
desdizendo a ocara tão oca
caricata da prosa
semeando a pétala rósea alfenim
asas de alecrim
me livro
nos vãos mercurianos
que sangram de vagar
amiudados pelos lados errados
de sete mil tréguas
acinturadas das fodas
bem dadas entre o açoite e a
noite
me livro entre o enxerto e o medo
e a foice
a cavalgada e o coice
me livro
quando chega o vento e
sacode os papéis
no excitamento dos pincéis que lambuzam
minha pele branquíssima
missa míssil
escuro-me no livramento do desejo
mais bem dito da boca, do bico
entre o gemido o grito e o irrestringível
me livro
quando encaro o olho da rua
e ela ignora meu viço
atro^pelando as carnes retardatárias
que não acompanharam o alvorecer
maceradas de alumbramento
interstício pichado no cimento
silêncios atravessados das vidraças
areia e árias
me livro
no quase e tremo
atrás dos vitrais mais sanguíneos
na consequência sem trema e
acentuada que arvora sob a artéria e o limo
me livro
na hóstia que a(s)cende
o dia ensagrado e acena pras
minhas quebradas verdades
verdinhas de sempre dissecadas
na umidade que me chora e lambe
as idades na masturbação que arde
é que não rimo
na rouquidão dos anseios
sem línguas desprotegidas nas
sanidades de frágeis mortes
me torturam as opacidades
as sobras e a sorte
e que me cortes
em fendas lineares para
te tornares a mais beijada
estrofe
e me descalço e dispo
para caber esvoaçante
no teu peito
livre
é que me livro...
palavras
palavras de amor
somente suaves toques
apenas escritas com pena
apenas palavras
esturricando
era um cheiro de queimado que vinha sei lá de onde. não houve festa nos vizinhos, em casa muito menos. era um churrasco de flores sob minhas narinas. algo estava pegando fogo...eu sentia. esturricando. tudo igual lá fora. tudo diminuindo dentro. não havia estremecimento entre os corpos serenados pelo tempo que pisca. fumaça rondando o que se fazia de mim. nenhuma brasa, nem chamusco, nenhum fósforo aceso. fui dormir assim...sem saber de onde vinha aquilo...só sei que acordei com o coração desse tamaninho.
O esquecimento é um senhor bem asseado
O esquecimento é um senhor bem asseado, limpíssimo, que usa camisa regata branca para enxugar o suor das recordações peludas e grisalhas. perto do peito. e para posar o bom comportamento da memória que vaga em vinho colete. assim, o terno elegantemente acinzentado, bem clarinho para engendrar a desconstrução do que fora tijolo e cimento. poço...poço...poço...vão buscar no povoado de Santa Maria de las Três Iglesias...algumas pessoas que revelem o porquê do nome da cidade que não significa. apadrinhada por São Sebastião, venerável soldado do sem-tempo, dentro dentro dentro Santa Maria desapareceu num incêndio e tudo o que deslembrar é cinza de ideia, para compor com o terno. alinhadíssimo. muralhas de vento que enrugaram os músculos do senhor que ora chora a pena de brancura. antes sempre. madeira no caráter. paróquia da alma no povoado construído pelo coração que não enferruja, descoberto. corando as sementes plantadas nos quilômetros quadrados do pensamento que se livra. o incêndio que penetrou as entranhas da terra de alguém queima os manolos miolos com a argêntea certeza de que será construído um poço, porque há vestígios de terra nas unhas, há esvaziamentos, há quedas, mas ainda o senhor se agarra no pontinho verde, entre as pedras, mantendo seu corpo na mesma posição.
Há um livro entalado nas minhas veias
Há um livro entalado nas minhas veias, retangulando o processo entre as páginas encharcadas do que eu sou que nunca nem vi nem toquei. entupindo o fluxo contínuo do que seria uma vida tranquila. mas ele está lá, engrossando meu caldo, aqui, um pouco acima do ombro, quase no pescoço. jugular de veia avessa. se uma mordida existisse, poderia na surpresa, engolir uns pedaços de papéis ensanguentados. artérias que percorrem a circulação do que atravanca. não se respira não se respira não se respira. o cheiro dos livros desperta o corpo do que vaga na terra do outro. uma maneira de alimentar-se de palavras a serem segregadas e atuarem no alargamento do pronome inusitado, último. Uma tentativa de aproximação? distância aquém das substâncias manipuladas dentro do instrumento inábil. periódico. finito. aquele gosto de cabo de guarda-chuva que fica...sangue pisado.
espera
bom te ver me vendo
feliz momento em que me lê!
quero manter frágil
cordão enroscado pela sempre tensa palavra
cuide de mim em suas orações
que se rompam as grades quando agradeço
e que mais desço e mais transmuto
em digladiando com elas de mim
guerreiras histéricas e eufóricas
corações partidos são asas quebradas
sonhos decepados
...rubro desmazelo entre-quebrando a asa da palavra...
é tinto o astro que cansa de vagar
sobre o penhasco enroscado do verso
carrasco da palavra torta que corta a folha
da melhor estória
cabaça rebentada no talo do momento
as loucuras traquinando entre os gemidos
até a mordida mais rouca das estrelas no céu da boca
despencando todo certeza esfarelada
ofuscamentos enforcamentos
que não alcançam os pedidos ebulidos
pretéritos bulidos de delírios
de lírios que foram colhidos com os mesmos dedos
suaves, contando os apagamentos do sol engolido
que vai rasgando a garganta das frágeis memórias
estremecendo os vazios assombrados pela chuva que não se vai
todo o firmamento se curva aos silêncios brilhantes do tempo
que mora na insensatez dolorida
como um delicado sangramento
grudam-se as peles eriçadas
e todos os eles são longas lambidas
laterais medidas de encaixe
que vão gastando as salivas e os peitos
doces recortes quase mosaico decote de eus
tão nus, entornando os desejos
nos meneios, nos seios do instante que se enrugam
esvaziando os sentidos róseos de todos os nós
dentro da sala de espelhos
Antes
Com o coração hermeticamente aberto como um açougue metafísico durante os sete dias de um domingo interno ou imaginário, como qualquer outra ideia que tenta sem sucesso enlaçar o tempo que já havia antes do ser, cancelaremos todos os sentidos antes do verdadeiro fim e abraçaremos as asas da singela brisa acordada que nos excitará com o frescor dos instantezinhos que saltitam pela íris e coçam-nos de alegria, como passarinhos entre os dedos vibrarão as auras de assanhamentos corados pelo solar momento da separação entre a visão do mundo como um quarto e a recém-chegada e logo esquecida sensação incompleta de sair de um sonho com o coração hermeticamente aberto como uma aura aterrada dento do sétimo dia do talvez, estaremos amalgamados no ventre de todos os versos suspirados e não ditos antes da boca que engolirá os pseudo-beijos do real como a chuva engole o vento e dissipa arrepios no entendimento dessa paisagem incendiada por nossos olhos.
(com Marcelo Ariel)
A face do fogo
se flor esta.sem cor na vertigem
do botão que não resvala
por dentro
é a esmo o que
desbota des.com prometido
com a seiva anterior
que abraça o gosto
mentolado do instante
despetalado
todo corola em cor
verve primitiva
vertendo
a face do fogo
alhures arvoredo
no limiar do passa
redo em mim
Fenda Laminada
que Ondula o Rasgo
Estranhamente Sublime
o tempo é faca
foi-se a foice
flamejante
talhando arestas
esquinas sequiosas
ovário de lírio
orvalho
que sangra
que singra
como tu sóis
. quando tu fores
flores de alecrim
te perfumarão
em lençóis segredos
girassóis
nota de fim
Notas de fim:[i]
Local.
f Devia ser s.ubstantivo m.asculino que endurece e oferece os remates aos cantos. Mas não há disfarces às quinas sem substância/ estrangulada do que seria o centro./ Madeira boa para aparar o que termina, mas ordinário é o raso que não se apóia e roda roda roda meio da página sem pé sem estampa sem inferência.
[ii] s.ubstantivo f.eminino. Mancha borrão nódoa mácula cicatriz vestígio
[iii] maybe lembrança confissão esclarecimento
[iv] ária em sigilo
[v] Formato de número:
[vi] Marca personalizada:
[ix] Iniciar em:
[xiv] Aplicar alterações:
[xv] .
[i] Sabe o que acontece com você no tempo da delicadeza?
[ii] No que se converte em... que seria
[iii] O que me chama e chama do ente
[iv] Lavanda nos olhos infames
[v] ínfimos
[vi] É o que se parte como o vento na alma do medo
[vii] Que alcança o tempo da idade mais certa
[viii] Que enruga o que dorme no ventre
[ix] Do que nunca veio entre os labirintos
[x] Cabelos longos do cometa que foi engolido
[xi] Assim como a bala soft vermelha
[xii] Incorruptível que compõe o sol da mandala
[xiii] E se põe no que cala
[xiv] Entala