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Fragmentos

   UM CONTO DE AMOR

 

            - Tua avó é pirada, mas teu avô é pinel pacas!

            - Meu avô não é louco! Eles dizem que é esclerose, sacou, bicho?

            - Legal! Legal! Tá tudo bem, tá tudo bem...

            Mariozinho, 11 anos sensíveis, sempre irritava-se quando diziam que seu avô era louco. Só ele sabia de quanta sabedoria seu vôi era capaz. Só ele sabia quanto ensinamento as palavras sem sentido da boca velha e gasta mas cheia de provérbios contundentes, davam ao seu espírito de adolescente. Quantas noites ficara sem dormir, ouvindo o gemido sem dor, o grito exacerbado, o gemido pedindo carinho ou revoltado porque não o recebia. Todos haviam se tornado indiferentes, mas ele, Mariozinho, tinha por tarefa olhar a morte que se aproximava, a se interrogar porque ela deve chegar assim, sem dignidade, envilecendo o ser e numa prova de que o diabo existe... E não julgava infantil o seu pensamento. O doente não tinha uma palavra, um gesto, uma atitude que não fosse de revolta, de quase ódio, ou medo, talvez numa constante de torturar e torturar-se.

            - Sabe, confessou como se falasse consigo mesmo, às vezes tenho vontade de chamar um exorcista. Você viu o filme?... Todos dizem que vovô está esclerosado, mas para mim ele está “possuído”. Por que a doença não lhe dá bondade e resignação?

            - A velhice aperfeiçoa nossos pontos negativos, eu sei, já li isto. Velho é como criança mimada. Fica o centro do mundo. Ou quer ficar. Escuta aqui, Mariozinho, lá em casa teimam que ele sempre viveu internado, insistiu o amigo. Minhas tias me contaram... Mentira, elas nada me contaram, eu é que ouvi a conversa. Eles contam que só há 6 anos a velha pôde ter o marido em casa.

            -Minha avó é uma santa, tá na cara. Também, coitada, ela parece que nasceu velha.... Eu nunca vi vovó sorrir, nunca vi vovó se enfeitar, nunca vi vovó dizer alguma coisa importante. Era lá em casa é uma sombra...

            Mariozinho teve vontade de acrescentar: “Vovó é bitolada. Não sei porque, eu gosto mais do vovô...”. Mas achou que seria injusto.

            Mariozinho tinha um irmão mais moço. Os pais trabalhavam fora e deixavam o vôi pinel com a vó sombra e duas empregadas. Os meninos tinham ótimos colégios, bons brinquedos, livros caros, muitos amigos e muita imaginação. Mas suas distrações preferidas estavam no domingo. Era “O dia do jogo”. O jogo da fantasia. Seus pais alimentavam aquela brincadeira. Todos os domingos um deles era premiado pelo que tivesse realizado de mais criativo durante a semana. Reuniam muitos da família, havia votação, sobremesas preferidas, direito de falar e ser ouvido, um dia alegre, enfim. A mãe, Diretora num Colégio para indução de tendências e testes profissionais, sempre fazia um pequeno, mas brilhante discurso, com elogios ao mais votado; mãe feliz pela oportunidade de demonstrar seus conhecimentos psicológicos, seu espírito escolástico, sua colaboração financeira na família, sua primazia autoritária de mulher moderna womanlib.

            - E você, Mariozinho, qual foi seu jogo desta semana, perguntou mamãe Suzana.

            - Fingi de médico, mãe, a coisa que mais desejo ser .... Distribuí entre a vizinhança todas as amostras de remédio que o pai recebeu durante o mês.

            - Bonito, meu filho, bonito, comentou o pai, chefe de Laboratório. Mas... – já então temeroso – distribuiu “todas” as amostras?

            - Só as que não têm efeito colateral. Mariozinho ergueu a cabeça, consciente de seus conhecimentos. Já esperava as palmas, o discurso e o prêmio em dinheiro que lhe permitiria esnobar os colegas.

            - Pedro, de 8 anos, sentiu-se frustrado por antecedência. Mas teria que confessar sua fraca façanha.

            - E você, Pedro? Perguntou um tio mais ligado ao sobrinho menor.

            - Eu? .... Bem, eu ... mexi debaixo do colchão da vovó, encontrei muitos retratos, apostas da loteca, livros espalhados e um montão de cartas velhas...

            - E daí? ... – a pergunta foi quase uníssona.

            - Daí eu fingi de carteiro.

            - Carteiro? Carteiro como?

            - Botei algumas cartas em envelopes novos e entreguei elas de porta em porta a todos os nossos vizinhos ....

            O silêncio caiu na digestão da feijoada. A vovó sombra saiu da mesa.

            Mas ninguém notou porque também não haviam notado sua presença.

            E, neste esboço de romance, a festa parou aí. Mamãe Suzana previu sua falta de oportunidade de discursar ...

            É, tua ideia é válida, foi só o que soube dizer o pai.

            A mãe ainda comentou: “Entreguei-as, Pedro, entreguei-as, é assim que se diz”.

 

(Retirado da obra Sem falsa modéstia. Curitiba: Grafipar, 1978).