Você está aqui: Página Inicial / Índice de escritoras / E / Evely Vânia Libanori / Fragmentos

Fragmentos

Compras no mercado

Ontem eu fui ao mercado. Tinha que comprar pão. E a padaria é do lado do açougue. Que ideia nada a ver aproximar pão e sangue no mercado. Eu só queria pão, pão francês, que não tem ovos nem leite. Mas a padaria é do lado do açougue.

Eu já tinha esbarrado com ela, antes: uma menina com uns oito anos, uma monstrinha. Ela corria no mercado e trombava nas pessoas. Aí ficou do meu lado direito: ia comprar carnes. Ela se debruçou no vidro do balcão e ficou lá, bem em cima dos pedaços dos animais. Patas e costelas expostas, sangue por todos os lados. Tudo vermelho, uma guerra, uma carnificina. E ela lá: “Mãããe, que carne que a senhora quer? Hein, mãããe?” Uma voz aguada e enjoada. E a mãe: “Espera, eu já vou aí”. E a mãe se aproximou.

A menina olhava os pedaços de corpos, avaliava como quem entendia. É jovem e esperta: entende de carnes, sim senhor! Fiquei imaginando se aquele balcão de vidro rompesse e ela caísse dentro... “Um quilo da menininha, faz favor. Pra fazer sabão”. Não pude evitar o pensamento. O que fazer de mim e comigo? Será que eu tenho jeito? Seria uma vitela... criancinha na panela. Eu, a bruxa má das historinhas, fazendo sabão com as boas menininhas... 

A menina ficou ouvindo o pedido da mãe, aprendendo tudo. A mãe e a filha predadoras andando juntas no mercado. A feroz família feliz. Para elas, tudo está em ordem e está bem. E eu e esse nó na garganta.

 

O lagartinho

Era hora do almoço quando atearam fogo na chácara vazia em frente à minha casa. Chamamos os bombeiros, mas eles demoraram quase uma hora para chegar. Nós, os moradores bobos, tentando controlar o fogo com mangueira e balde. E eu vi, no asfalto, se contorcendo: um lagarto marrom e queimado. Todo queimado. Se ele tivesse voz ele estaria gritando de dor. O corpo longo de lagarto se contorcendo no asfalto quente. Veio gente ver, estavam com medo de socorrer. Eu peguei ele com as mãos e trouxe para casa. Ele estava quente, o corpo longo dele estava inteiro quente. O lagarto tentava sair das brasas. Pus ele na grama e liguei para a veterinária. Ela disse tudo o que tinha que fazer: compressa com solução fisiológica, Profenid para a dor, água de coco para hidratar. Só saí de perto dele para comprar os remédios. Meu bichinho era um lagarto filhote, os dentinhos curtos. Quando abri a boquinha dele para dar o remédio, tinha sangue e fuligem. Eu deitei do lado dele e dizia: “Aguente, força! Eu estou cuidando de você”. Ele, de vez em quando, abria a boca. Um reptilzinho na minha cozinha e todo queimado. A barriga queimada, a cabeça, a cauda, as patas. Ele tinha cheiro de carne queimada e estava vivo, na minha casa, o lagarto filhote. Era um filhotinho, pequeno ainda.

Era meio-dia quando eu peguei ele no asfalto. Os passinhos lentos de lagarto filhote que queriam fugir do fogo enquanto ele era queimado vivo. A dor que ele sentiu quando eu abri a boquinha dele para dar água e remédio para a dor... Eu devia ter dado mais remédio? Dei como a veterinária falou, mas, com o corpo tão queimado… E eu vi como é um lagarto. Nunca antes na minha vida eu tinha visto assim, um tão de perto. Era o primeiro lagarto da minha vida. Que bicho mais lindo, meu Deus, que bicho mais lindo! E eu estava ali para ajudar ele a morrer. Ele estava ali, indefeso, inocente. Que dó, que dó, que dó, que profunda dor no meu peito.

Era meio-dia quando eu levei ele para casa, e às quatro horas ele morreu. A respiração foi ficando fraquinha, fraquinha, e ele parou de respirar. Eu peguei ele nas mãos, quis espantar a morte, gritei, mas não teve jeito... A agonia dele durou quatro horas. Ele quietinho todo esse tempo, sentindo as dores lancinantes do corpo queimado até morrer quatro horas depois. Quatro horas de dor e sofrimento...

Eu cheguei a acreditar que ele ia viver. O olhinho dele parecia que olhava para mim, e depois foi fechando, fechando, e a respiração parou. Dentro de mim o ódio, a dor. Ódio e dor. Enterrei o corpo do lagarto-menino num terreno verde. O lagartinho que a terra recebeu.

Quem ateou o fogo ninguém sabe, ninguém viu. Foi alguém que, à noite, jantou tranquilamente, viu a novela, rezou antes de dormir e acredita que vai para o céu. 

Eu escrevo para ver se assim eu paro de chorar. Para parar de pulsar. Porque ontem foi um dia de muita dor e de muita tristeza. O menino-lagarto de quem eu cuidei está morto, e quantos mais o incêndio matou. Quantos mais o incêndio matou... Agora ele está morto. Morto e dentro de mim. Para sempre dentro de mim. E, antes de dormir, eu pedi a Deus para que a minha alma vá para lá, para onde ninguém mate, para onde não exista mais a dor. E onde eu possa conhecer como é, vivo, o lagartinho que eu ajudei a morrer.