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Fragmentos

Meia-Máscara

 

O “conjunto habitacional” das meretrizes se expandia com ostensiva insolência, chegando o dia em que o “boom imobiliário” plantou a pensão de Mme. Alzemira a oitenta metros do armazém de Monsueto Pavão.

            Embora ali mesmo ele residisse, com a mulher e o filho de quatro anos, o espraiamento da “zona”, ao contrário do que pudessem pensar, só lhe iria trazer proveito. Além do mais, fazia muitos anos que o Armazém Pavão abastacia os bordéis. Azeite português, azeitonas, tâmaras, bombons, “champagne”, caviar, vinhos e queijos importados, constavam das faturas por ordem expressa das cocotes.

            Eram ótimas pagadoras, comportavam-se com decência e recato quando iam fazer seus pedidos (elas mesmas estipularam um horário especial), tinham um profundo respeito pelo casal e eram loucas por Toniquinho, que teve mais chamego e colo da parte delas do que de dona Salviana, a única auxiliar do auxiliar do marido atrás do balcão.

            O menino era inteligente, precoce e muitíssimo bem educado, não obstante ter sido confundido com um quisto, na idade crítica da mãe, já então conformada com a esterilidade.

            Desde os três aninhos fazia a entrega das diminutas mercadorias pedidas por telefone: cigarros, velas, torcidas para lampião, lâmpadas ou carretéis de linha; assim, freqüentava as casas de todas as mariposas e amiúde era convidado para o almoço –aceitando sempre.

            Dona Salviana a princípio se aborrecia, pois achava que o filho estaria a incomodá-las, sujinho do jeito que andava por aquelas ruas sem calçamento, ora cobertas de pó, ora de lama ruiva e pegajosa. Mas nunca se opôs, para que não a tachassem de preconceituosa e se ofendessem. Depois acostumou-se; afinal de contas era pequenino, inocente e correspondia à altura o amor imenso que o mulherio lhe devotava.

            Toniquinho volta e meia aparecia com um pião, um punhado de bolinhas de gude, um bilboquê, um almanaque ou um papagaio de papel fino, presentes carinhosos de “tia” Aspácia, “tia” Cassandra, “tia” Greta ou “tia” Lindóia. (Isto na década de trinta, quando tal forma de tratamento não estava tão inflacionada quanto hoje).

            Chegou a época do Natal e o movimento do armazém se tornou exasperante. Dona Salviana só via seu temporão à hora do jantar. Toniquinho andava ao léu, imundo e feliz, bebendo sua infância e fazendo a “via sacra” de covil em covil, enchendo o bandulho de gulodices e os bolsos de cacarecos.

            Uma noite, à hora costumeira do banho, comunicou à mão que o “presepe” estava armado na praça e as “tias” Serenita e Anabela haviam prometido levá-lo até lá “amanhã bem depois do almoço”.

            No dia seguinte levantou cedinho e começou a azucrinar dona Salviana, para que ela lhe vestisse “a roupa nova de passear”. A pobre senhora, às voltas com a distribuição de pão e do leite, não tinha um minuto disponível e Toniquinho, respondendo que não era cedo coisa nenhuma, passou a segui-la, como uma sombra choramingueira. Três horas (ou mais) de atucanação e acabou por levar umas sapecadas no traseiro. Botou a boca no mundo... e desapareceu do mapa, como de hábito.

            Por volta das cinco horas entrou sorridente no armazém: Além da freguesia, lá estava a turma permanente do chimarrão, do que Monsueto não abria mão por maior que fosse o movimento. Toniquinho embasbacou todo mundo: impecavelmente limpo, terninho de marinheiro, botinhas e meias brancas, cabelos besuntados de brilhantina e penteados à Gardel e trescalando “Mitsouko”.

            Nunca andava por ali àquela hora e muito menos naquela pinta; foi um tal de mexer com ele que só vendo; puseram-no sobre o balcão para que todos pudessem apreciá-lo.

            O vigário, que mamava seu amargo, tirou a bombilha da boca e levantou as sobrancelhas para Toniquinho, o robusto e fiel anjinho das procissões de sua paróquia.

–  Epa sapo! – disse ele. – Como está galante o nosso homenzinho! Aonde vai assim tão chibante?

– Fui ver o presepe da praça e conversei com o Menino Jesus. . .

– Dona Salviana  – tornou o velho padre – meus parabéns; essa trabalheira toda e o menino tão arrumadinho. . .

Toniquinho se lembrou do pouco caso da mãe e das palmadas que levara às onze da manhã; deixou cair a meia máscara e respondeu:

– Não foi a mãe coisa nenhuma; foi a putada que me enfeitaram. . .

 

 

 

 

NEWCASTLE

 

Não quis acompanhar meu grupo até o topo do penhasco. Estirei-me à calidez matinal do sol de fevereiro.

As vozes vinham subindo. Eram mulheres e crianças que, indiferentes à minha presença, acomodaram-se a dois ou três metros, continuando a conversa.

– “Ela anda rotando grandeza outra vez, Madalena.”

–“Então não tou sabendo? Pra mim ela também anda de proseação.”

–“Desta vez é galhinha; tu sabia?”

–“Como não!... diz que o marido leva de monte não vencem de comer e não repartem com ninguém.”

– “É uma cadela; mas Deus é grande, Madalena, e nossos homem um dia vão ter também a sorte do homem dela...”

De repente estourou a algaraviada: – “quero esse aí, mãe, que é mais grande – tira as mãos daí Gaspar – este ta podre demais, me dá outro – deixa que eu corto, menino – mãe, o Juca roubou minha fatia – larga a melancia de teu irmão, senão eu te cago de pau – chii... este também ta podrecido – calem essas boca e comam, seus bosta, que pai não demora de chegá...”

A criançada aquietou-se e um novo diálogo começou, estremeado de líquidos mastigares.

–“Tu vai de carro pra casa?”

–“Tou esperando meu velho aqui e tu pode ir conóis porque o caro vai ta folgado.”

Sentei-me e encarei a turminha que não me deixara sequer cochilar: – duas mulheres macérrimas e seis meninos igualmente esqueléticos. Maltrapilhos todos e colocando restos de muitas melancias dentro de um saco de aniagem.

Enquanto eu os observava, um caminhão parou ao sopé da rocha.

– “É papai! É papai!”

Estava em pé; em cada mão erguida, uma penca de galinhas. Gritou qualquer coisa e todos dispararam morro abaixo, escorregando, caindo, sorrindo, felizes, velozes, lá se iam os miseráveis para casa – e para o banquete.

Newcastle!

A palavra sinistra relampejoi: – estava grassamando em todo o Rio Grande do Sul e chegara até ali, para aquelas párias, com um nome bem brasileiro: SORTE.

Fechei meus olhos tarde demais. Eles já haviam captado as letras pintadas na carroceria:

 

SERVIÇO DE COLETA DE LIXO

PRAIA DE TORRES

 

 

(Retirado da obra: “Aspas” (Parênteses) e Reticências...)