Fragmentos
NOME: OMEN
Inventei um homem que se chamava Almíscar e depois alguém me disse que isso não era nome de gente. Acho que eu tinha lido numa revista, paciência. Então eu mudei pra Cambraia e alguém me disse que isso também não era nome de gente e então eu vim com essa: é o sobrenome. Escapei. Escapei das críticas. Mas agora eu estava pensando, pensando em retrospectiva que na verdade eu nem devia me lixar com esses comentários e nem mudar uma vírgula do que eu tinha inventado antes. Que têm a ver com o homem?
Inventei um homem que se chamava Rim porque eu peguei um dicionário em inglês que dizia que rim quer dizer borda. Achei bonita a palavra rim. Depois, pra não ficar só nas coisas que a gente considera bonito, eu achei importante que ele tivesse uma idade qualquer achei que seria maravilhoso se ele tivesse 39 anos porque é bastante mas não muito, quer dizer é o suficiente pra algumas coisas. Depois que eu percebi que eu também queria ter 39 anos mas não tinha. E algumas daquelas pessoas que apareceram criticando lá no parágrafo de cima vieram com um papo de que “na invenção há sempre uma parcela de reprodução do próprio desejo da própria pessoa que está inventando a própria invenção” e o resto não lembro mas eu fiz questão de citar com aspas porque é frase alheia e não fica bem se apossar de frase dos outros. Eu não entendi o falatório todo porque de cara eu empaquei na palavra parcela que me pareceu disparatada. Intrigante. Passei o dia pronunciando aquilo parcela parcela parcela. E depois pintei a palavra na parede do quarto primeiro pequenininho parcela e depois médio e depois grande. É uma palavra e tanto.
Inventei um homem que se chamava Parcela. É não tenho muita criatividade. Esqueça.
O homem, eu inventei, deveria ter barba porque se algum dia estivesse com um problema grave um problema gravíssimo - como alguém com hectestoplagite na família ou a sogra que vem morar na casa da gente ou a filha adolescente que lascou uma unha ou ainda uma lesma enorme e visguenta que apareceu na sala-de-visita - poderia se trancar no banheiro, pra ganhar tempo sabe como? E dizer Dá licença, gente, que eu tenho que tirar esta barba primeiro. Dá licença, volto em instantes. “Dá licença” porque ele é um sujeito educado, a gente percebe até pelo modelo da barba que ele deixou. E depois fez cortes estupendos naquele rosto macio que não estava mais acostumado ao ato de barbear ao ato delicado e puro de se escanhoar e as mãos tremiam devido ao problema gravíssimo. Aí aparece com a cara cheia de esparadrapos e as pessoas em volta dirão Oh! E outras dirão Oh! Meu Deus! E outros dirão, mais lentamente, Oh Meu Deus do Céu!! E mediante aos talhos comoventes no rosto se evidenciará que o problema outrora gravíssimo não era tão nobre assim que amanhã é outro dia que vão-se os anéis mas ficam os dedos que água mole em pedra dura tanto bate até que fura e que a corda sempre rompe do lado mais fraco.
O homem que eu inventei sabia falar latim. Levou anos e anos estudando num quartinho sombrio levando uma vida sombria pra não perder tempo senão não aprendia direito a pronunciar todas aquelas palavras solenes. Segundo relato do mesmo ele aprendeu direitinho. Mas nunca ninguém viu ele de fato falando e nem ele mesmo pôde checar se sabia realmente declinar conforme as regras ou pronunciar tivervorum ou pitombae adequadamente que não fosse com aquele sotaque de lá pras bandas de Ijoporuca (cidade natal do dito cujo e onde permanecera apesar do clima ruim) e ele foi até uma cidade vizinha pra falar com um padre que rezava missa em latim esperançoso de encontrar alguém pra praticar a língua com ele e já chegou perguntando pro padre comis estavat e o indivíduo (o padre) ficou olhando com cara de asinorum e nem falava latim coisa alguma: tinha decorado tudo. Ele era uma farsa (o padre). Era um padreco, não passava de um padrusqueta desses por aí, a paróquia toda ficou sabendo e as senhoras horrorizadas quiseram até tirar o cara (o padre) do posto alegando falsidade ideológica mas não deu quorum. E será que ele (o homem) não era uma farsa também? Foi o que ele pensou depois daqueles anos todos passados em vão não podia nem mesmo saber se era uma perfeitíssima farsa. Quantos bailes não idos quantas valsas não dançadas quanta noite insone decorando figus figuae trimera trimerae pritricus pritricae quantas cervejas que jamais tomara quanta besteira tinha deixado de dizer. Agora ia pro resto da vida (um restinho que sobrara) ter que sonhar tudo na língua desconhecida. Condenara-se à condição de homorum hominorusquiat. O que talvez pudesse ter sido bem pior se tivesse se dedicado ao sânscrito. Quem sabe.
Quem sabe inventei um homem que era uma verdadeira piada. Primeiro que a barba era postiça. E a palavra postiça dá margem a muitas outras associações cerebrais por exemplo: filho postiço, da famosa expressão Tal pai tal filho postiço. Ou dente postiço. Da usual expressão Olho por olho, dente postiço por dente postiço. E se eu errar a digitação: postigo. Naquele livrinho da Condessa de Ségur a menina morava num sótão gelado na França e tinha um postigo. Foi a única situação real da minha vida em que me confrontei com a palavra postigo. E agora me lembrei da palavra prestígio, essa sim tem uma vida digna de ser contada. Todo mundo fala: fulano tem um prestígio e-nooor-me tenho prestígio entre os membros da Cúpula o Alpheu tem prestígio com os carinhas que têm prestígio lá na Corregedoria. E eu fiquei pensando se vou adquirir um certo prestígio inventando um homem que é uma farsa. Farsa pura: primeiro que a barba era espessa demais pra ser verdadeira. E o nariz muito bem desenhado e nunca escorria. E os dentes sorriam sem o menor esforço. Na medida certa. E depois inventei uma coisa engraçadíssima mas não vou contar. Não vou conseguir contar porque eu sempre rio na metade da coisa e não tem nada mais chato do que alguém contando uma coisa engraçada e rindo misturado com a coisa que a gente está esperando ser contada e a gente fica olhando o idiota e pensa Como é idiota. E no meio da coisa a gente também pensa Estou fazendo papel de idiota. Esse homem que eu inventei que era uma farsa esse sim alcançou um prestígio enorme inventando frases filosófico-filológicas que podiam ser usadas em várias línguas. Consagrou-se com a máxima É a vida. That’s life. C’est la vie. Hasta la vista.
Mas vá lá: Rim Almíscar y Cambraia, um tipo de homorum, nunca foi a um baile em sua vida, nunca jogou conversa fora, nunca bebeu um hi-fi quanto mais dois mas mesmo assim casou-se (sabe-se pela presença de uma sogra num dos parágrafos anteriores) e um dia retalhou sua própria cara tentando fazer uma barba falsa que descobriu que nunca tinha sido sua, paciência. Foi um susto quando olhou pro próprio rosto no espelho lisinho macio (o rosto) liberto da pelagem intensa uma maravilha se não fossem os pontos em vermelho. Vermelho escorrendo. É, até que é um sujeito boa-pinta! É, ali pra vidinha pacata de Ipojoruca, até que conseguira um certo prestígio naqueles 39 anos de vida, uma família até que saudável apesar da filha com unhas fracas, casa com postigo e tudo, aquela empresinha modesta mas que estava indo bem, especializada em eliminação definitiva de eventuais lesmas nojentas em salas-de-visitas finas. Vinha prestando um serviço à comunidade. E no domingo ia na missa só pra ver o padre falando naquela língua bonita. Sabia de cor alguns trechinhos (ele mesmo e não o padre). E depois, era considerado um intelectual, desde que no batizado da Thaíseleyne, filha do prefeito, ele pedira a palavra e dissera: A vida é uma sucessão de alegrias, fringências e desprantamentos. O que é a vida do homem senão um sermício de obnivolências? Um longo esmático de implacidices frângicas que nos vliquêiam nos momentos de infúncias? O prefeito quase chorou. E a dona Adelaide Eumira, professora do Grupo Escolar Dr. Adherbaldo Matta, disse pra todo mundo Foi o melhor aluno que tive em toda a minha lida no magistério!
Um homem inventou-se. E todos pensarão que é brincadeira. E todos dirão que, faça-me o favor, falta alguma coisa essencial neste arremedo de escrito. Aliás, convenhamos, falta muita coisa de essencial! Sejamos francos. Perdemos um tempo importante das nossas vidas lendo besteiras inconseqüentes. Coisa insalubre. Coisa insensata. Coisa nefasta e nefanda. Exclamações. Ao que responderei: Ô, gente! Sai pra lá! Quer saber uma coisa? Eu vou pagar o preço pela piadinha. Mas me diverti desde o título, tá certo que perdi um pouco o fio da meada quando bateu o telefone e era o Geraldo e eu tava naquele afã criativo. Podia ter sido mais engraçado mas não era pra ser engraçado. Eu inventei um homem. Só isso. Inventei um homem e depois um sobrenome uma cidade um padre uma idade importante lesmas em dois momentos do texto um prefeito e uma professora e ainda consegui encaixar a palavra postigo que eu tinha sempre vontade de colocar no papel eu irritei meio mundo com aquela coisa toda de parcela parcela parcela. (Coisa nefária e infanda). Eu irritei aqueles que usam corretamente as normas para o emprego correto das “aspas”. Eu irritei profundamente os críticos. Principalmente os que dominam a nossa língua. E o resto.
O homem que eu inventei não é homem de negócios nem homem de sete instrumentos. Não é sequer um homem de letras. Porque falta uma. O homem que eu inventei não é nem de longe um homem daqueles com agá.
Que assim seja: Omen.
(de Vozes num divertimento)
NÃO ERA GATO NEM ERA PRETO
1) Arca
2) Cavalinhos na chuva
3) Since 1410 a) A primeira morte de um homem
b) Dois é bom
c) Onde há fogo haverá fumaça
1) rita hayworth NÃOÉ salvador dali NÃOÉ venha por aqui NÃOÉ bem-te-vi NÃOÉ tira o pé daí NÃOÉ me and bobby magee NÃOÉ a perna do saci NÃOÉ a dercy NÃOÉ o derzu NÃOÉ praga de urubu NÃONÃOÉ waterloo NÃOÉ vai se foo NÃOÉ Roger Moore NÃOÉ jingle bells NÃOÉ orson welles NÃOÉ vinde a mim NÃOÉ kkk NÃOÉ ti-ti-ti NÃOÉ pequepê NÃOÉ sarah vaugh NÃOÉ déja vu NÃOÉ o sheik de agadir NÃOÉ a tia liamir NÃOÉ um faquir
2) O Dr. Nivaldo pensa que com dois comprimidos daqueles de receita azul três vezes ao dia eu voltarei ao normal a Izolde pensa que é da idade mesmo deu até um exemplo do filho do chefe dela a Dona Irene pensa que eu vou dar o cano no aluguel deste mês já o motorista do táxi pensa que o certo mesmo era eu me internar e deu até o endereço duma clínica que a vizinha dele ficou e a Dona Valda nem tchum só disse “Poblema né meu!”
E você meu amor que triste só na minha cabeça o dia inteiro a noite inteira também e pensa que eu nem lembro mais de você.
3) A armadura (não confundir com o termo musical) é um conjunto de defesas habilmente feitas de metal, é uma vestidura que se constitui basicamente de capacete, couraça e etc. Antigamente as armaduras serviam para proteger o corpo do guerreiro contra o inimigo e até hoje permanecem com o mesmo propósito. A mãe da minha trisavó, que deus atenha, sempre contava que as armaduras apareceram oficialmente em março de 1410. Suas peças fundamentais são: elmo, gorjal, bateira, espaldar (ou espaldeira), braçal, manopla, couraça, plastrão e o saio (que protege ventre e ancas) e constam ainda a escarcela, a joelheira (duas), as grevas e os borzeguins. No século XVI tinham mais de cem peças – as armaduras. No século XXI eu usei uma incrível armadura precaríssima e talvez por isso eu tenha morrido em combate e eu segurava um escudo com o brasão da Ordem e um corne na outra mão acho que foi por isso que eu morri porque devia ter deixado uma das mãos livres ou talvez as duas. Numa segunda chance, usei uma armadura de justa mas não consegui correr com o sapato de ferro com aquele enorme bico revirado. Eu não consegui correr e talvez por isso eu tenha morrido em combate mas o sapato era incrivelmente bem forjado. Na terceira chance lá estava eu novamente a armadura belíssima e pesadíssima sonhando que era um dos cem-lanças do rei e eu pensei que desta vez nada aconteceria – quero dizer a morte em combate.
3a) A primeira foi Tereza, aquela a quem dei a mão a quem dei segredos a quem dei o ouro e o azul a quem dei meu nome a quem dei dias e noites a quem dei histórias até amanhecer a quem dei carícias e inadimissíveis a quem dei memórias a quem dei a cara a bater. Tereza era maravilhosa era deliciosa era imperiosa era o nome da rosa era fabulosa era rigorosa era licenciosa era o mar cor-de-rosa e eu não percebi o excesso de rima o excesso de rímel o excesso de rimbombância o excesso de exceção. Deu no que deu: deu-me a queda e fui ao chão.
3b) Benita guardava uma foice na primeira gaveta da escrivaninha. Uma venda na segunda gaveta do lado esquerdo do armário do quarto. Uma cinta-liga na cômoda. Bem na gaveta do meio, é, aquela que às vezes emperra. E ela usou tudo comigo. E eu me senti as quatro estações eu me senti o baobá do pequeno príncipe eu me senti o grande passo para humanidade eu me senti a teoria do universo em expansão eu me senti aquela panquequeira utilíssima que ainda faz macarrão e biscoitinho eu me senti um Hemenocallis flava eu me senti a torre em A1 amparada por outra em B2 olhando pro rei inimigo em A8 eu me senti Estevão I da Hungria eu me senti a Universidade de Saragoça eu me senti o vírus da gripe eu me senti as Ilhas do Canal de Moçambique eu me senti um Mouton Rothschield tinto eu me senti eu mesmo dançando uma sarabanda às quatro da madrugada e me senti muito bem. Pelos campos montanhas mesmo pisando sobre lírios, pelas ruas cidades pisando mesmo sobre pedras, eu muitos braços e pernas cabeças despenteadas finalmente consegui chegar à janela de Benita pedindo vozes num coro: “quero pão!” mas ela famosíssima rainha, enfastiada talvez, isentou-se de prosseguir aquela história. Cansada do meu uníssono que não pára, ordenou voz: “coma bala!” Benita Malver era boa nisso. Parece a Calamity Jane. Parece o cardápio daquele restaurante caro que a gente não vai poder nunca freqüentar. E eu quando me vi era um texugo perseguido escorraçado. Quando me vi estava pálido quase me mato atropelado. Quando me vi era um tronco oco. Um barco ferido com um rombo. No fim do túnel havia ainda túnel. Em mim o fim.
3c) E agora é você. Este agora pedaços pode ser verdade pois ponteiros pois vozes pois incompreensão; este agora retalhos pode ser esquecimento semelha a loucura e é loucura pra alguns. E a história inteira eu sei contar: não era greta nem era prato não era grito nem era porto não era grota nem era perto não era treta nem era certo não era letra nem era ponte não era litro nem era corte não era livro nem era norte não era lindo nem era london não era fundo nem era franco não era fino nem era hino não era falho nem era talho não era filme nem era fome não era nome nem era nume não era rouco não era pouco não era surdo não era ralo não era reles não era um jogo era grito era porto era perto era certo era lindo era fundo era franco era fino era filme era fome era nume amor de louco é caso sério é risonho é trevo é talismã é mistério é sonoro é a comoção do que teve do que pôde do que muito tocou o que é leve é gozo de grande porte.
É o gato preto que é sorte.
(de Vozes num divertimento)
Daqui
Olho o tecido de listras. Vermelho verde e marrom claro vermelho verde e marrom claro. É uma toalha estendida no chão. A mesma toalha de todos os dias e é ali que comemos com o sol ardendo sobre nós. É assim que se faz neste lugar. Não sei quantos anos eu tenho. Sete talvez. Estamos sentados em volta dum enorme prato de farinha misturada com carne de carneiro. Minha mãe faz um movimento com a cabeça e isso significa que podemos começar a comer. Cada um avança com sua colher de madeira e se serve, vai se servindo diretamente do enorme prato. Minha mãe está quieta. Como sempre. É muito magra. Usa um lenço azul na cabeça. Quase nunca vi os cabelos da minha mãe. Tem mais de dez filhos. Felizmente a maioria é de homens — só nós três que não. Nas mãos cheias de calos os anéis dançam. Aqui neste lugar as mulheres casadas usam vários anéis, mas eu ainda não sei o que significam. Meu irmão mais velho morreu no primeiro ano da guerra. Foi em Eifaés. Olho pra escada branca escavada na rocha. Tenho orgulho. Os degraus exatamente do mesmo tamanho. São perfeitos. Foi feita pelo pai do meu avô. Eu não sei como ele se chamava. Minha irmã, essa aqui do meu lado, vive rindo de tudo — não entendo bem por quê. Não sei nem se eu gosto muito dela. Tenho um irmão que trabalha na companhia de extração de hulha. Quando eu pedi pra ele me explicar como é o trabalho lá ele disse: nem dá pra contar. Sempre tenho fome. Hussein avança na comida, Messali também. Têm fome. Daqui a dois dias Messali vai embora. Vai trabalhar em Onme. Ferhat partirá no mês que vem (vai sobrar mais comida sem eles, pensei) pra um lugar com montanhas perto do mar. Foi lá que o pai do meu avô viveu. Plantou muitas figueiras. Messali tentou conseguir emprego nas planícies, mas a região não presta pros vinhedos. E ele teve que voltar. Voltou magro. Eu levei um susto quando vi e fiquei mais triste. Os homens daqui não sabem fazer muita coisa. Meu avô sabe. Foi ele que fez as colheres e o prato. De madeira. Meu pai veio de um lugar onde não chove. Não chove nunca. Ele tem o rosto escuro e uma barba rala e branca. Ele tem os lábios muito grossos e umas rugas fundas na testa. Muito fundas. Eu queria passar a mão ali pra sentir. Tenho dez anos talvez. Nunca falei com o meu pai. Meu pai é um homem sempre quieto. Também é triste eu acho. Não sei. Perdeu um braço na mina em Bechiara. Meu avô conversava bastante comigo. Foi ele que me explicou que se você dividir em dez este território ondeeu nasci nove partes serão de deserto. Ele riscou a areia do chão e disse: esta região se chamava Hiareb n-Housat. O nome ficou na minha cabeça. E volta. É sempre a mesma paisagem aqui a mesma comida pouca e a minha mãe sem dizer uma palavra. Quando eu era bem pequena ela cantava enquanto escolhia lentilha. Cantava baixinho. Passava semanas separando as pequenas pedras dos grãos. Agora ela olha sempre pra baixo. Meu avô plantava trigo quando era moço. Eu tenho doze anos talvez. A cidade onde eu nasci no passado se chamou Teefsium. Os berberes vivem nas montanhas. Berbere é uma palavra parecida com bárbaro (é como os romanos chamavam os homens das montanhas, meu avô me ensinou isso também). Eu vivo numa aldeia. As casas são amontoadas. Os irmãos que ficaram cultivam trigo e cevada nas encostas. Na época das frutas dá damasco. E também dá romã. Casaram a Nastiha com um homem quelevou ela embora num cavalo baio. Ela nem sabia disso mas não reclamou. O pai deu um abraço nela antes dela partir. Abraço pela metade. No inverno o pai abandonava a casa de pedra e ia morar numa tenda. Pastoreava as ovelhas perto de Giskrat. O pai é triste. Meu irmão mais velho morreu em Eifaés. Lá tem vales férteis e tem desfiladeiros com água da chuva. Quando a minha mãe morreu tiraram os anéis dos dedos dela. Eu queria ter ficado com um. Ferhat mandou uma enorme caixa de madeira pro pai. Tinha alcachofras. O pai ficou olhando. Durante dias a caixa ficou ali no pátio. Durante dias. Não comeu e não deu pra ninguém. As alcachofras murcharam e depois apodreceram. E aí ele apenas apontou pra caixa: era pra eu jogar fora. Então eu vi as alcachofras secas — me lembrei das mãos da mãe. Sem os anéis aquelas mãos não pareciam mais as dela. Daqui a dois anos vou fugir desse lugar. Antes que o pai me case. Vou fugir até aquela cidade grande que eu vi na revista que o Arouj guardava na mala dele. Vou trabalhar em Seaba porque tem o porto. E o Arouj disse que é de lá que saem os barcos. Depois de três semanas os barcos chegam na cidade. Lá cada pessoa come num prato só seu. E é isso que eu mais quero ver.
(de Acasos Pensados)
DESCULPE O TRANSTORNO
A tia-avó Adeleide Hedvig Sibylla não dormira nada. Não dormira nada aquela noite. Nada, nada! Um inferno! Afinal não conseguia parar de pensar no que seria do menino, pobrezinho. E ainda por cima bem o filho da Anna Maria, bem da sua sobrinha favorita! Ainda se fosse da Amabella Helge, ainda se fosse! Ou do Lothar Adelbert! Bem, o que se há de fazer, não? O que se há de fazer? E ela que pensara que o garoto daria um ótimo padeiro... Ah, se fosse como o papai! Athanasios Ignaz, que Deus o tenha, que Deus o tenha em descanso! O melhor padeiro de Salzburg! Na carta, a Anna Maria diz que o menino é agitado e tem mania de se beliscar (vive roxo, ela disse!). E que faz caretas pras visitas, já pensou? (Ah, se ela ainda morasse lá em Salzburg, e não aqui nesta cidadezinha horrível que é Innsbruck, podia ajudar a Anna Maria a educar o pequeno!). E tosse o tempo todo (mas não está com o pulmão carregado!) e ainda tem uns modos que, por mais que a mãe repreenda, o menino não consegue evitar: cheira os objetos e repete palavras sem sentido! Palavras sem sentido, já pensou?! Mas pelo menos vai bem com o violino (o Leopold anda ensinando, pelo menos), está progredindo que é uma beleza, ela contou. Mas também, o que é que adianta tocar violino? Eles vão viajar com o garoto — ele vai se apresentar em Viena, tocando na casa de um nobre (que até vai pagar um dinheirinho, veja só!) e aí aproveitam pra levar num médico que preste. Mas se fosse padeiro, como o papai, se fosse padeiro estava garantido. E estava seguindo o que vai no sangue da nossa família! Coitadinho do Wolferl, meu menininho! Isso foi aquele susto que a Anna Maria levou quando estava de seis meses. Só pode! Só pode!
PROPRIEDADES E IMPROPRIEDADES
Descrição
A família dos Diazeponi sempre se dedicou a atividades depressoras do SNP. Entre seus mais eminentes membros se destaca o Clonaperidol, que vem tendo muito sucesso no estímulo dos receptores de GADA no sistema reticular ativador ascendente.
Indicações
Tratamento de crises mioclônicas. Ausências do tipo refratárias a succinimidas ou a ácido valpróico. Crises tônico-clônicas. Transtorno de Tourette. Síndrome de Dascomb-Leneau e, discutivelmente, no Mal de Koll Inn na forma literal e crônica.
A tia-avó Annifrid Beate Lydie não comera nada. Não tinha apetite desde ontem, desde que visitara a sobrinha Anna Maria. Meu Deus, que modos daquele menino!! E a Anna Maria não faz nada! Não repreende, não castiga! Vai criar um desajustado! Um verdadeiro détraqué! Nem dá vontade de comer; não adianta, estou muito preocupada. Fica lembrando do menininho que pisca o tempo todo e vira a cabeça pra direita sem parar. E aqueles palavrões que ele fala? A gente, como visita, fica tão sem jeito! Se fosse filho da Amabella Helge não tinha destas facilidades, ah, não tinha! Ela sabe dar educação pros meninos — e olhe que tem cinco! Mais as duas meninas! E o Leopold, como pai daquela criança, ao invés de ser mais severo fica só ensinando piano, e música, e só querem tocar o dia inteiro. Será que não pensam no futuro? A Amabella Helge já pôs os meninos dela para aprender um ofício. Se pelo menos a Anna Maria pensasse em fazer do Wolfgangus Gottlieb um bom padeiro... como o papai (que Deus o tenha)! O melhor padeiro de Salzburg! E na nossa mesa nunca faltou nada! As meninas da Amabella Helge já estão sendo educadas pro casamento; e será que a Anna Maria já pensou em preparar a Marianne?? Duvido! Coitadinha da menina, tem que agüentar o irmão cantarolando aquelas musiquinhas o dia todo! Sem parar um minuto! E depois conversa com o Bimperl, já pensou conversar com o cachorro como se fosse gente?? Eu não digo nada. Não quero me meter na vida deles, mas cá pra mim acho que eles deviam levar o menino num médico melhor, uma vez. O Dr. Sergius Metzger é ultrapassado. Nunca ouvi contarem que ele tenha viajado a estudos, nunca, nunca. O que não pode é deixar o Wolferl daquele jeito! Ainda se viesse a ser um bom padeiro! Não, piano o dia todo! Que desperdício! E os palavrões? Isso foi aquela vontade de comer schweinebraten pflaumen appfel que a Anna Maria teve quando estava de sete meses e o Leopold, um desligado, não foi capaz de providenciar pra coitadinha! Pode escrever que foi isso...
As revolucionárias palavras do Dr. Tourette, na palestra de 12 de novembro último, em referência a esta imagem do cérebro do compositor foram: « Certains ont émis l'hypothèse que ces dysfonctions pourraient avoir lieu au niveau du lobe frontal. Il n'y a toutefois pas consensus à ce sujet. »
O adorável menininho Georges Albert Eduard Brutus Gilles nasceu na chuvosa noite de 30 de outubro de 1857 em Saint-Gervais-les-Trois-Clochers (Perto de Poitou! Ah, tá!). Sua avó não prestou atenção nas horas, se era 19h43 ou 20h17 e depois o genro dela (o Dr. de la Tourette) deu uma bronca e tanto na velha que tinha ficado encarregada de anotar, ainda que mentalmente, a hora exata do nascimento do garoto — mas não era o momento para discussões, ainda que familiares, e a poeira logo baixou. Bem, de qualquer forma, graças à avó desastrada, Gilles jamais pode fazer seu mapa astral, o que explica por que se meteu numa roubada na venda daquele terreno em Nîmes e contraiu uma daquelas doencinhas na juventude e uma vez pisou num prego e infeccionou, claro, e ele foi visto mancando por aproximadamente quatro dias, mas no resto até que se deu bem.
(... segue)
Os antipsicolíticos, a despeito do estigma que sofrem há anos, ora sendo chamados de “drogas que derrubam", ora como “porcarias que viciam" ou coisas deste tipo, têm um relevante papel na vida da gente.
Por reduzirem o grau de excitabilidade os antipsicolíticos são importantíssimos no controle dos principais transtornos. O mau emprego que vem se fazendo dessas santas substâncias deve ser proibido — elas não devem ser usadas como válvulas de escape das nossas mazelas cotidianas, nem como panacéia da insônia resultante de outros fundos emocionais.
A tia-avó Sabine Frizzi Paula decidiu que não iria visitar a irmã esta tarde! Pomba-rola, a Annifrid Beate anda muito impertinente! A única coisa que faz é criticar a Anna Maria por causa do menino dela, o coitadinho do Wolfie! E daí que o menino funga?! E daí que o menino é envergonhado!? E daí que faz aquelas caretas engraçadas?! É criança! Ah, ele toca violino tão bonito! E já compõe as próprias pecinhas musicais!! Que lindo aquele minueto!! A Annifrid tem é inveja do menino porque os filhos da favorita dela, a Amabella Helge (pensa que eu não sei?!), são uns poltrões. E daí que o Wolfie não vai ser padeiro, como o papai? Que Deus o tenha em bom lugar! Mas se o menino tocar violino direitinho pode ser professor do Conservatório — é uma bela carreira, também! Só é um pouquinho tímido, e daí? O Dr. Metzger já disse que não é nada! Ele até riu da idéia da Annifried de receitarem clonaperidol pro menino. De onde será que ela tirou isso? Vou mandar a Angele avisar a Sabine Frizzi que eu não vou para o chá. Que acordei com um resfriado. É só um pouquinho tímido, o Wolfie, e daí? Foram os solavancos da carruagem que a Anna Maria teve que enfrentar quando inventou de visitar a Adeleide Hedvig e estava de cinco meses... Também, com aquela estrada esburacada de Innsbruck!
(... segue)
Aspectos Específicos à Cultura e ao Gênero
O Transtorno tem sido amplamente relatado em diversos grupos raciais e étnicos; ele é aproximadamente 1,5-3 vezes mais comum no sexo masculino.
Prevalência
O Transtorno ocorre em aproximadamente 4-5 em cada 10.000 indivíduos.
Curso
O Transtorno pode iniciar já aos 2 anos; geralmente ele principia durante a infância ou início da adolescência e, por definição, antes dos 18 anos. A duração do transtorno em geral é vitalícia.
Padrão Familial
A vulnerabilidade ao Transtorno é transmitida segundo um padrão autossômico dominante. "Vulnerabilidade" implica que a vítima recebe a base genética para o desenvolvimento de um Transtorno. A penetrância deste gene em portadores do sexo feminino é de 60% e em portadores do sexo masculino é de 89%.
Palavras do doutor Hergen Baltfried Abendroth, eminente médico vienense, quando consultado por Leopold e Anna Maria a respeito da agitação de seu filhinho Wolfie:
Na ensolarada tarde (se bem que ventava) de 09 de julho de 1863, a tia-avó Adélaïde Ermenegilde Rosemonde foi à casa da querida sobrinha Marjolaine Pascaline. Ah, dá gosto de ver a sobrinha tão bem casada, com aquele moço encantador de uma família de médicos! Nem bem desceu do fiacre (sim, é das antigas!) já avistou um belo trio à sua espera: a irmã Agathe Morgaine, a sobrinha Marjolaine e o pequeno Gilles, seu sobrinho-neto. Que beleza! Que suntuosa casa! Que agradável a decoração deste hall! Que espelho belíssimo, comprou em Poitou? Que preciosa cortina! Oh, que bela poltrona adamascada! Oh, quão lindo este bibelô sobre a mesinha! Oh, que gracioso retrato com moldura rococó! Que fina porcelana luís-quinze! Que aprazível... (Ai, chega!). Agora já estão todos acomodados na sala e Gilles observa a tia-avó fazer um incessante questionário à Marjolaine, que sempre termina as respostas com uma risadinha boba e uma olhadinha pedindo a aceitação da vovó Agathe. Aquilo ali já estava durando umas cinco horas, acho! Então o menino sentiu o rosto ficar vermelho quando a tia-avó, de supetão, se dirigiu a ele:
— E o nosso petiz? Tem demonstrado interesse pelos estudos?
— (ele olhou para o cadarço das botinas e pensou “putz!”)
— A tia-avó lhe fez uma pergunta, Gilles... — a mãe, com delicadeza, observou.
— S...si...m. — ele finalmente respondeu.
— Oh, que encantador! — disse a tia-avó Adélaïde. E o que é que você quer ser quando crescer, hein? (Gilles não entendeu porque as três se entreolharam animadamente antes mesmo de ele responder).
— Quero... quero ser... padeiro.
— Oh, meu Deus! Minha Sainte Jeanne d’Arc, que tolice é esta???!!! — a tia-avó, horrorizada, disse e olhou severamente para a irmã exigindo uma resposta.
— Meu filho, que brincadeira absurda! Quem foi que lhe pôs tal idéia abominável na cabeça?!! — a mãe estava encolerizada — Onde já se viu? Você será médico como o seu pai e seu avô! Você bem sabe disto! E será discípulo de Charcot! E influenciará Freud! E será um prolífico escritor. E professor!
— E em 1896 levará um tiro, no seu próprio consultório, de uma paciente paranóide que você tratará com hipnose! E esta notícia vai dar em todos os jornais... — acrescentou a vovó Agathe Morgaine.
— E escreverá o belo artigo “A Histeria no Exército Alemão”... que, inclusive, despertará a ira de Bismarck!! — gritou a tia-avó.
— E além de tudo emprestará seu nome, o nome da família, a um importante Transtorno! Um transtorno e tanto! Que acometeu e acomete gente da mais alta estirpe! Generais, cônsules, gente da nobreza, fabricantes de escabelos, motoristas de caleça, compositores austríacos! [não prestei muita atenção neste momento (me engasguei com a pipoca) e não me lembro quem foi que disse esta frase, desculpem].
— Já para o seu quarto, Gilles de la Tourette! Espere só até seu pai tomar conhecimento desta afronta! E que a palavra “padeiro” nunca mais seja pronunciada nesta casa — ordenou Marjolaine Pascaline, e depois tomou um golinho d’água que ela mesma teve que servir (de uma jarra adequadamente ali disposta pelo cenógrafo), já que a sua mãe estava acudindo a visita que irrompera numa irremediável crise de choro.
(de Acasos Pensados)
PRÓLOGO
(OU “NÃO COMECE!”)
Senhor, prometo que me comportarei bem, embora desconheça totalmente a ordem em que se emprega cada um dos talheres. Conforme protocolos. E uma vez cortei o peixe com uma faca muito errada, imagine. Presumo as gargalhadas engolidas. Terei talvez condenado aquela faca a um ridículo irreversível. E a anfitrioa nada disse e o internúncio fingiu estar distraído com a estampa do guardanapo branco e o colunista nada publicou, nada que pudesse me fazer sentir ainda mais menos, menor. Não que tenham rido. Não que tenham explicitamente debochado. (Esgares educadíssimos; discretos). Não que isso tenha afetado o vermelhar das flores ou constrangido voos. Ora, isso são detalhes e, ao dizer essa palavra, transformo “talheres” numa rima. Interna. Ruim, péssima, mas rima.
Senhor, cansei, confesso logo no início: é tanto relógio que desperta, é tanto telefone que nos toca, é tanto elevador que não nos chega, é tanta campainha que não soa, é tanto cano que entope, é tanta pilha que já não presta, é tanto jornal que esqueci de ler, é tanta gente nessa fila. Filmes perdidos. Temporadas inteiras. Eis-me outra vez observando. É tanta gente nessa folha. É tanto pó. Não, sem mapa. Sem nada. Isso aqui é um início. Isso é prólogo.
Senhor, tende piedade de mim porque me cerquei de feiura e sujeira e doençaria e palavras tristes, embora não pudesse evitá-las, já que existem e fazem de si o que seremos nós. Palavras que supuram. Palavras inchadas de ironia e pus. A tudo isso me exporei. Só para dizer que ainda existo. Corro riscos. Gostaria sempre de sair com vida. Não se pode ter tudo que se deseja. Eu sei.
Talvez seja melhor tentar assim: Senhora, me perdoa! Não tinha um estepe. Não tinha um band-aid, não tinha uma vela, não tinha um agente, não tinha um contrato, não tinha um projeto, não tinha avalista, não tinha um de sobra, não tinha pensado nisso.
Senhora, já que mandas, tende piedade de mim. Senhora, curvo-me, flagelo-me, aflijo-me. (Senhor, se for o caso novamente). Senhora senhor, estarei no que professo. Fazei de mim um instrumento de corte. De mim um instrumento de sopro. De mim um instrumento público.
Mas dizei aquela palavra.
E estarei alvo.
HOMENS & NUM
UM
Frau Homera Kortmann era uma louca. Ninguém dizia isso assim, com essas palavras, desse jeito escancarado. “Isquisiiiiiita!”. “Focê non acha extrránho aquela molhér?” “Cruzincrédo, deve de ser bruxa!!”
Numa das aulas de corte-e-costura (fui com a tia) ela espetou um alfinete em mim. Enquanto a tia estava no banheiro. No meu braço. Claro que foi de propósito. Fingiu que experimentava um molde cortado em jornal e... pimba. Tinha raiva de criança, me disse. Limpou o sangue com o indicador. Ficou olhando o próprio dedo (unhas de um cor-de-rosa encardido e antiquíssimo). Deu uma risadinha para si. Eu aguentei firme e não chorei.
Pensando bem, acho que não me disse, assim com palavras, que tinha raiva de criança. Acho que isso eu que entendi. Fiquei olhando fixo pro Diploma de Corte e Costura onde tinha nome e sobrenome da louca em letras floreadas. Homera Emma Ulrika Kortmann dos Santos. Nem tinha o Frau. A tia voltou ajeitando o fecho éclair do slack e parou na frente da folhinha pra ver que dia é hoje. Nem tchum. Sangue esquecido, sangue desconsiderado.
Uma vez roubou um botijão de gás da garagem da casa da frente. [A Frau Kortmann era, no fim das contas, uma ladra de olhos azuis miudinhos com sombra espalhafatosa em volta e boca murcha com batom fingindo o que não se esconde, e cabelo de coque estufado, com aqueles tufinhos soltos perto da orelha que eu esqueci o nome daquilo. De cada orelha. Às vezes usava um turbante ensebado onde as flores comidas apenas lembravam o anteriormente.] Quando os donos estavam viajando. A Augusta viu. E anos depois o Lácio confirmou isso numa conversa sobre vizinhos, um dia em que a gente se encontrou por acaso na frente das Americanas. Se estava cheio, o botijão, não sei.
Era uma daquelas loucas que a gente tem muito medo. E um tipo de lembrança, sei lá o que é, pro resto da vida. Ah, às vezes eu tinha medo mesmo porque ela morava ali pertinho, na esquina da mesma rua que a gente. Mas nunca cheguei a sonhar com a Frau Kortmann nem que me perseguia nem com alfinetes nem com floresta nem que era boazinha e me oferecia doces. Nem que estavam envenenados. Mas ela vai aparecer aqui em todas as páginas. Bem, todas talvez não. Foi exagero.
DOIS
Eram dois, um tirou diploma de Contador e tudo, mas nunca usou. Chamava José Luis. De pequeno ele teve um trauma com o pai – não sei direito a história toda, é o que diziam. O pai não prestava, sabe, e o menino deu meio desacorçoado... Naquele tempo essas coisas com pai eram medonhas – não tinha tanta psicóloga formada e a gente não lia tanta revista. Não sei o que acabou fazendo vida afora. Casou, isso eu me lembro. A mulher era enfermeira, a Creuza. Acho que viveram de renda. De uns aluguéis – coisa pouca – por parte da família dela. E parece que ele dava umas aulas particulares não me lembro do quê. Matemática, será? Eu ia meio mal em equação na escola. Prova era um sacrifício. Você teve aula com aquele professor suarento? Tinha até musgo naquele avental dele! Nem sei pra que que a gente estuda todas essas coisas; acaba não usando nunca. Lembra de mitocôndria?
O outro filho dela, que eu achava lindo (olhão azul igual da mãe), trabalhava com venda e instalação de cortina. Chamava Jorge Luis. Também casou. Casou com uma morena boazuda. Era sirigaita [Eu bem que vi a Rose recolhendo homem lá na casa dela depois que o marido saía pro serviço. Colocar cortina...]. Um dia deu um arranca rabo lá e no fim de semana eles mudaram; pra onde, não sei. É, pancadaria da braba, e voou até um pegador de macarrão pela janela (nunca entendi). Não se teve mais notícias. Mas se a gente perguntar pra Ácia que fim levaram os filhos da Frau Kortmann ela sabe. E eu sempre acho esquisito pensar que aquela mulher foi casada, com marido e tudo. Um alemãozão, decerto, do sangue dela. No fim teve um bando de netos, mas nem notícia do paradeiro.
Agora a coisa mais difícil é encontrar a Ácia! Pegou serviço de noite e dorme de dia. Antes a gente encontrava ela facinho; na Dona Margarida – volta e meia eu topava com ela comprando verdura lá. Agora a gente da rua anda rareando. Virou quase tudo escritório. E não dá pra esquecer que ali na esquina da Clotário Neves com a Dr. Trajano Lima tem os caras do cachimbinho – e às vezes umas gurias, até. Novinha, novinha! Maior dó. Tá tudo tomado mesmo. Claro que dá medo. É ruim, porque às vezes a gente sai pra prosear um pouco e ninguém tá com tempo. (E a Dona Margarida é aquele mal-humor de sempre, nem adianta puxar conversa...). Compra a verdura que precisa e volta simplesmente. Volta pra casa com as histórias velhas, vencidas, sabe como? E sem nenhuma nova pra pensar nela. Coitada da Ácia; será que a gente sonha igual dormindo só de dia?
(de Périplo em espelho)
3.
De repente tudo é tão extenso e extremo e tão absolutamente irreversível e a gente ficou tão grande e reuniu tantas folhas e conheceu tantos nomes e decorou tantos deles e esqueceu o dobro das coisas e catalogou tantos gestos e pôs à prova as redondilhas e pôs em risco o feriado e preparou a armadilha e feriu e curou e tudo de novo e se impressionou com os silêncios e usou palavras do dicionário e se desencantou com os sentidos e se regozijou com pequenices e se desvencilhou dos falsos ombros e esteve na moda e esteve na lona e pediu asilo e obteve asilo e levou um não e levou um susto e levou um tiro na cara e recebeu uma notícia e recebeu flores e foi mesmo tão súbito? É tudo tão minguado e carescente e tão absolutamente irreversível. A chuva pesada lá fora golpeia o telhado com uma obstinação comovente; e nós, aqui dentro, resguardados, nem ouvimos.
4.
Amanhã chegam as pedras. Duas viagens do caminhão, mas pelo combinado vão cobrar só uma – ainda bem. As pedras são escuras, quase pretas. Eu tinha escolhido umas mais claras, mas acabaram mandando essas. As clarinha é mais escorregativa. E dispois encarde com o tempo. A dotôra saiu foi no lucro. Consegui um empreiteiro para calçar a via desde o portão lá da frente até a varanda da casa. Seu Ari Fumego. Vou terminar de pagar tudo em três meses. Mas vale cada centavo. Pelo menos vai diminuir a lama toda do caminho que dá aqui em casa. Quando chove é um transtorno. O Luis Henrique fica irritadíssimo com a possibilidade de atolar o carro. (Ah, só atolou de fato uma vez!). Com o carrero agora diminói a lameira. Vai melhorar bastante pra nós. O Adão garantiu que o Seu Ari Fumego é caprichoso. Bom, é cunhado dele.
Nesse silêncio vi as perguntas formando fila e calmamente apanhando as ferramentas de corte. E no silêncio compreendi a esfoladura a escavação o esmerilhamento. Eu percebi que uns saem ilesos – lhes é permitido desconhecer as agruras da esfoliação e igualmente a pressão irreversível do torno. Também percebi que outros – esses todos nós que não seremos poupados – terão que aguardar pelas respostas. Achando injusto, a princípio, e depois cedendo, e depois aceitando, assumindo a condição de ser em segundo plano. Nesse silêncio pude entender a espera, ou pelo menos tentei me aproximar de uma definição. Eu pude mensurar deuses e deuses, pude ver aquela planta cuja existência foi apenas – a partir de certo ponto que o destino previu – falta d’água, sede, secura, sequidão, estrangulamento. Eu pude compreender punhais e a evidência da dor enquanto ingrediente. Pude permanecer um lamento até que a própria voz se desfizesse. E eu queria entender em mim essa tormenta do silêncio para sempre no peso da canga do jugo da férula e desta inderrogável solidão.
5.
A minha risível nudez a minha precariedade. A noite inteira eu chorei pensando naquele homem de quem sinto tanta falta. E ao mesmo tempo não posso mais pensar em nada. Sei que não posso mais pensar em nada do que aconteceu e, sobretudo, em nada do que jamais acontecerá. Já não aguento reviver cenas antigas.
O Luis Henrique, hoje, uma vez mais, não veio me trazer palavras. Não pronuncia o nome que eu adoraria ainda ouvir. Um tácito ato de calcinação. Ele trouxe apenas as mesmas perguntas de sempre. Umas perguntas ocas e insistentes. Não tem nenhum livro nesta casa??!! Não entendo você, uma especialista, abandonar uma carreira tão brilhante!! Como vai criar os filhos neste fim de mundo?? Mas mesmo assim, mesmo com toda a distância que a presença de Luis Henrique ironicamente acentuou, olhei para as mãos do meu irmão enquanto ele gesticulava e olhei para as minhas mãos sobre a mesa e fiquei pensando em como somos parecidos em tantos detalhes, e em quantos pontos precisos temos a mesma história. E quando ele foi embora, quando vi o carro dele gradualmente se apagando naquela estrada, senti se aproximar o desamparo que vem colado ao medo de olhar de frente meu vulto desmoronadiço. Estátua em mendicidade.
A minha indelével armadura a minha carência. A noite inteira eu chorei pensando naquele homem de quem sinto uma falta inarrável mortificante inelidível. E eu queria gritar o nome daquele homem que desapareceu, que se perdeu dos olhos, que se ausentou. Eu queria abraçar aquele corpo, queria poder contar a ele o que acontece com os nossos filhos – como são bonitos, com que ciência vou prepará-los para o mundo e como me mostram que o riso despretensioso é o jeito lógico de sobreviver.
A noite é sempre uma história injusta, borrada, vaga, uma história demorosa e triste. Eu me envergonho dos desejos lúbricos, me traz humilhação a recorrência de apetites que insistem e na insistência mostram um lado pulsante do meu corpo ainda jovem e ainda ardente. E então me afundo de todo quando flagro quando percebo a extrema penúria do animal que se submeteu, que se reduziu à fraude da satisfação mentida. A minha marcada penúria.
Luis Henrique jamais traz uma palavra de conforto. Dá para entender perfeitamente o Leo sumindo com o carro novo. Me leva junto? Não quero envelhecer aqui.
Ah, a minha precariedade a minha repetição a minha ausência a minha incapacidade a minha estiagem.
Neste impressivo alheamento eu queria gritar o nome daquele homem meu e tão nunca tão nunca tão nunca tão nunca mais.
A noite inteira eu chorei.
(de Com que se pode jogar)
SOLAR
Não, não ficaram feridas.
E, nem de longe, expiações.
(Fumaça solo).
Da casa onde os degraus rangiam
(tábuas desgastadas, cuide!)
Os pequenos quartos
Antes do salão de acordes maiores ao piano.
Adega de licores escuros e poeirentos,
Marolos e butiás de um verão que se envasou.
Porão onde se engomam linhos,
Punhos e pregas saltam dos cestos de vime.
Nas tinas se alvejam lençóis enodoados de desuso,
(noites subtraídas do enxoval),
Tácitas criadas na lavanderia
Curtem seus ventres que crescem e murcham
Pensando em nome bom pra filho sem sobrenome.
À beira de tanques, fantasiam galãs radiofônicos.
Mãos calosas transportam baldes de zinco.
Na cozinha, timbres e registros em fugato
Discutem técnicas de quaradura e compotagem.
De vestido de chita e discreto retardo mental,
A vesga lava os litros com uma bucha.
A frigidaire vanguardista respira obstinada.
Na copa, onde as primas viúvas debatem
A aposentadoria no magistério e sianinhas,
Até o amor-aos-pedaços é cristianíssimo.
A biblioteca proibida do tio que desapareceu.
(Talvez ratos. Perdeu-se a chave. Talvez comunismos).
A alcova da tia-avó ausente pela fraqueza dos pulmões.
Soalho íntegro à custa de escovão e lumbagos.
Na penteadeira, o leque e o pó-de-arroz indiferentes.
Um quarto de teto inclinado onde
A avó de alguém, talvez minha, conversa com a Lanofix
Que cospe pontinhos doutos e calculados;
Uma matemática anotada em caderno de quadradinho
Garante a profusão de raglãs e rulês
(sacadas a olho duma Burda na banquinha).
Mão que rege com um transportador de pontos.
Pegado, a agregada alemã de estada indefinida ali
Que perdeu fortuna e marido, os cabelos longos e a língua,
Reza luteranismos e espera.
Talvez um telegrama.
No jardim, camélias imaculadas viçam e fenecem,
Apesar de as mãos pequenas, talvez minhas,
Sabotarem um que outro botão.
No quintal, marmelos e galinhas dão conta do tempo,
Mainos e bonançosos, cirzem cenas de espelho.
O pai não chegará às seis da tarde.
Talvez meu.
A lenha empilhada remata o dia
(friagem, cuide!). Grilos procedem. Vésper.
Tomamos sopa em dois turnos.
Nós antes. Eles depois.
Sabão de cinzas. Trempe areada.
Pratos no guarda-louças, hieráticos de novo.
De um rádio escapa a novena
De Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
As moças velhas sussurram Glórias.
O cuco apregoa braços de Morfeu,
Por conta de automatismos.
Os olhos do pequinês estão miúdos.
Sagrado o tudo de novo.
Aranhas vazam de frestas e de breviários.
Alguém toma um trago de garrafa clandestina.
Alguém chupa a pastilha pra dor de garganta.
Livre de anágua e liga, alguém deixa os dentes no copo.
Sob o oratório esconde-se a chave da despensa.
No escuro, a chama do cigarro de alguém.
Talvez hoje.
Talvez eu.
(de Trato de silêncios)
SCHRIFTSTELLER
(o livro de fotos)
assustador um homem que inventa
outros homens
o que veem seus olhos
abertos ou fechados
noite ou dia
assustador um nome que ao ser pronunciado
faz existir as frases que aguardam na estante
Nabokov caça borboletas
com uma rede adequada e pisará sobre flores
Estaremos numa primavera?
Beckett mira qualquer botão da camisa
no quarto de negra totalidade
Estaremos roucos?
Char segura uma bengala
ou uma espada
Estaremos mortos?
Kerouac vê cadeiras, teto, tapete,
cortina e um despertador automático
Estaremos prontos?
Borges, se você sair desta enorme janela
não vinga a eternidade
Estaremos rindo?
Genet sentado no chão desconsidera
a última moda em lenços de couro
Estaremos quites?
E você, escritorzinho sem fotografia,
precisa de um blazer axadrezado
com mangas puídas
um aluguel vencido
um cabelo sem corte
um olhar indecifrável
um cachorro latindo
uma dor aguda nas costas
ou no braço
ou de dente
um copo vazio
outro copo
ônibus barulhentos passando
a manhã inteira
a tarde inteira
a noite inteira
passando
uma solidão que semelha a brasa
comendo o cigarro
(por falta de imagem mais nobre)
precisa abraçar uma enorme estátua
e pensar numa palavra não inventada
Estaremos salvos?
(de Trato de silêncios)
CENA-MUDA
eu que era único
e indivisível
agora criei tentáculos
ávidos
que não controlo
roubam vermelhos vivos
que nem sei para que servem
desejam tanto, usurpam
violam cantos sagrados
espalham cinzas
riem
esbofeteiam
cinicamente esfarelam
pedaços lícitos de pão
distribuem as fichas
embaralham cartas
trapaceiam noites adentro
alheios ao meu desconforto
trazem ouro profano para casa
abarrotam mesas
e eu, mudo e multifacetado,
olho a insana riqueza
que meus próprios braços acumulam
e tentando escutar meu vão discurso
não consigo
porque as frenéticas mãos que não controlo
aplaudem ruidosamente
ONTIVO
Nos encontraremos e eu estarei atarefada
e você estará imerecível
e eu estarei cansada para o cafezinho
e você estará exausto para um cinema
e eu estarei amorfa
e você palimpsesto
e eu estarei rendida às evidências mais ocultas
e você descompassado às vivências absolutas
e eu estarei com pressa
e você naquela hora imprevisível
e eu estarei naquela hora portentosa
e você estará naquele momento incrível
e eu estarei naquela manhã chuvosa
e você estará naquela noite audível
e eu retrocederei até auroras
e você avançará aos ocidentes
e eu compreenderei infinitudes
e você desvestirá os contratempos
e eu deslizo pela superfície e vou embora
e você mergulha mar adentro e refloresce
(de Trato de silêncios)
DE SOMBREAÇÃO & BORDADURA
quando eu vivia na casa da rua anis
os cômodos e os exemplos eram imensos
calor abatumado na água-furtada
os insetos tergiversavam
e as rãs e os sorrisos eram de cristal holoédrico
uma mão regia os contratempos
os cometas eram inexplicáveis
as uvas de cera eram jacobinas
o amuo era sustado com água vegetomineral
elogio à lerdeza e à pantofagia
baralhando as notícias do jornal
um quelônio às vezes emergia da horta
para surpresa dos anões estáticos
para desespero da tia-avó manquitola
para a emoção do mamoneiro
quando viviam todos na casa e ainda eu
os genuflexórios levavam a alturas máximas
e eram temíveis as quedas e as vertigens súbitas
e eram temíveis as asas enferrujadas
e eram temíveis os olhos búricos
os sapatos haviam conhecido todas as ruas
as sacolas haviam carregado curiosos pesos
os compassos haviam desenhado todos os círculos
os ombros haviam acumulado elegias
eu dançava para que as acácias brotassem
eu dançava para que o doce desse ponto
eu dançava para que os vértices coincidissem
eu dançava pela alma dos afogados
me impressionavam as hagiografias
me impressionavam as vidas das criadas
a prataria escurecendo me impressionava
as joias na caixa me impressionavam muito
os dentes podres
a tabuada era um tratado de versificação
os espelhos tinham valsas embutidas
o tule sinonimizava voto e desejo
os desvãos do corpo eram grandezas incertas
e grudada nos rostos e colada às mãos e à pele
e às vozes mais delicadas mais desaplaudidas
ia insistia afincava
a aula magna do tempo
NAQUELE MAIO
as certezas chegavam oficialmente pelo correio
você guardara as máscaras numa maleta
e a maleta num baú antigo
e o baú fora enterrado a metros e metros
ou jogado no fundo do fundo do oceano índico
junto com as chaves
com os segredos do cofre
com o zoológico de cristal
Isto não se sabe
E eu seguira regando os gerânios
as prímulas e os telegramas vindos de longe
afofando a forragem no cocho
desenterrando ossuários
ocupada não fora ao baile
cuidara dos detalhes da brotação
cerzira albores e antefaces
Isto se sabe
UMA TARDE QUE CAI
Quando o vemos está sentado no banco da praça
Ela está em casa presa à trama silenciosa
Na praça pássaros e flores são sinceros
Na janela pássaros são fantasmagóricos
Com o lenço do bolso ele seca o suor da testa
Ela enxuga os olhos com a manga
Ele rosna mas só por dentro
Ela supura mas nunca aos domingos
Ele lastima porque o pão é azul
Ela suspira e a tarde muda se avelhanta
Ele pergunta se as janelas são sinceras
Ela pensa em se atirar nalguma água
São fantasmagóricos os azuis que saem dos olhos
A gangrena e a borra são absolutos
Quando o vemos está em frente à TV imaterial
Ela está de costas de bruços de borco
Ele está palitando os dentes à espera
Ela vazia
Ele está entardecente e flama
Ela boia sobre a água azulíssima
Ele tosse cospe resmunga lanceia vage
Ela fez as unhas e o bolo simples
A previsão do tempo anuncia chuva
Ela toca a pedra friíssima
Ele se ofende
Ela se ofélia
(de Querer falar)