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Fragmentos

O CRIME

 

Foi aquele alvoroço, no bairro. Era mesmo um bairro grande. Imagine um crime de morte! Imagine mais, que foi mãe que matou filho.

Era assunto demais para uma cidade. Manchetes terríveis, muito maiores do que comportava a imprensa local. As manchetes ficaram tão grandes que saíram para jornais grandes, das metrópoles. E tome notícias no GP, no CP, no ESP, no JB, na FM, faltou sigla para tanto escândalo.

Assanho total, cobertura universal. Falatório que não acabava mais. A mãe assassina descarregou o revólver em cima do pobre filho. Caso de camisa de força, hospício, pena de morte, ou sabe-se lá. Não tinha castigo tão grande, todos eram pequenos. E ainda por cima, a descarada matou e se entregou, dizendo “Matei meu filho”.

Depois, ela não falou mais, ficou com os olhos parados, quietinha, dócil, como uma santa. Foi presa, enjaulada, e não disse mais nada. Não queria nem advogado, nem conversa. Não tinha outros filhos, só aquele. Decerto, se tivesse mais, matava mais, ­ — dizia o povo.

Foi o doutor Norberto, meu amigo, que foi contratado para o caso. Em psiquiatria, era ele só. No começo, ele me disse que a sua cliente estava bloqueada e não falava nada. Nem olhava, só fixando a parede, às vezes levantava e ficava vendo a grade do cubículo, sem vontade. Nisso de olhar parede e olhar grade, se passaram muitos meses. O meu amigo se apaixonou pelo caso e fazia duas visitas por dia. Conseguiu transferi-la para um hospital.

Parece que ela pegou confiança nele, porque um dia começou a falar. Contou que era viúva há muito tempo, ficou sozinha com o filho pequeno. Com o dinheiro de fazer doces e salgados para festas, pôde sustentar a si e a ele.

Sempre ocupada no fogão, não reparava bem nas coisas do filho. Não deixava faltar nada, roupa lavada e passada, cadernos e livros, comida na hora certa. Trabalhava dia e noite, no tanque, no ferro e no fogão. O filho era exigente, queria as coisas na hora certa, gostava de comidas finas. Sempre bem arrumado, só de roupas boas. Tinha um gênio difícil, desde pequeno, reclamava de tudo aos gritos, batia porta, não parava em casa. Depois dos quinze anos, foi que não parou mais.

Ela, atarefada, só se preocupava com o bem estar dele. Quantas vezes aconteceu que o dinheiro dava só para um ovo ou um bife, que era reservado para o filho.

Num certo dia, ela percebeu os agrados do filho para o Chicão. Percebeu os requebros, os olhos de namoro, os desbundes. Sempre ele teve certos jeitinhos, mas ela pensava que eram só modos. Muito trabalho para fazer, não podia tomar tento nos detalhes. O pensamento no que fazer, no que pagar no lavar, no passar e cozinhar. No todo-dia. Fazer tudo, sem ligar para a dor do “bico de papagaio”, das varizes e do reumatismo.

Pois então, viu tudo. Reconheceu o filho veado. Não disse nada, pois veado reconhecido é muito pior. Perde a vergonha.

Homens, vinham aos montes. Bebiam e faziam algazarra até de madrugada. Ela, na cozinha. Não tinha coragem de ir na sala. Tinha vergonha. Às vezes dormia na cozinha mesmo, num colchão, embaixo da mesa. De lá, ouvia a festa, os palavrões, danças e muitas vezes brigas. Sabia que seu filho apanhava dos homens, pelas marcas de bofetadas, manchas roxas na cara. Certa vez, ouviu ele pedindo para o outro, com voz doce “Me bate, amor.”

Houve um dia que discutiram por causa de dinheiro, o macho queria quinhentos cruzeiros. Como ele não tivesse, apanhou até ficar desmaiado no chão. Ela cuidou dos ferimentos quieta, calada.

O filho tirava dinheiro dela, exigia cada vez mais, se não desse, apanhava.

Descobriu que fumavam maconha, faziam orgia na sala, nos quartos, ela se havia mudado para a cozinha, definitivamente. O “veado” passava a chave na porta, ela ficava apartada. Quando saía, deixava a porta aberta, para ela fazer limpeza na casa.

Depois, na arrumação de gavetas, viu o pacote de maconha. Pediu que levasse aquilo para fora de casa. Ela ficou furioso, ameaçou fugir de casa, se ela se metesse mais uma vez na vida dele.

Pensamento, resolveu tomar atitude. Quando o filho estava dormindo, o que fazia geralmente pelo dia inteiro, sorrateira, ela apanhou aquele pacote — com medo e com nojo. Colocou dentro de um saco de supermercado e saiu para a rua. Conseguiu queimar aquilo sem chamar a atenção. Voltou para os seus afazeres, esperando. O filho descobriu logo o acontecido e veio furioso, tomar satisfação. Dizendo que estava perdido, que os outros iriam matá-lo, foi batendo nela. “esta é pra me respeitar, esta é por você ter me posto no mundo”, e tome bofetada. Tanto apanhou, que ficou desfalecida. No dia seguinte, pela hora do almoço, os homens da polícia chegaram, procurando pelo pacote. Revistaram a casa toda e não encontraram nada. Alguém havia dedado. Durante toda a busca, o filho olhava para a mãe, como quem pede desculpas. Depois, ficou uns dias sossegado, mas logo esqueceu tudo e retomou a vida de farras, bebidas e maconha.

Ela passou a viver aflita, sempre vasculhando as gavetas e os armários. Ficou com pavor da polícia, vivia em sobressalto.

Novas surras aconteceram. Para terminar de arrasar a pobre mulher, houve aquele dia. Ela estava na cozinha, terminando de fritar os salgadinhos para entregar no dia seguinte. Já se alinhavam prontos seis tabuleiros, arrumadinhos em cima da mesa. Na sala, os festejos iam altos, danças e gargalhadas, fumos e bebidas.

De repente, começou a briga, o filho apanhando e gritando, a mãe, presa na cozinha, não podia fazer nada. Quando tudo se aquietou, a chave girou na fechadura, a porta se abriu e surgiu o machão. Era um brutamontes, horrível, olhos injetados de bebida e de raiva. Agarrou a mulher pelos cabelos, deu duas bofetadas, empurrou-a para a sala e mostrou o filho caído no tapete, sangue escorrendo do nariz. Sem largar dos seus cabelos, ele vociferou:

— Tome tua filha, sua megera, cuide dela, que ainda está viva. Trate bem, porque ela me serve muito. Agora, escuta. Tem um pacote na gaveta do armário que é meu. Cuide bem dele, porque senão, eu mato você e o veadinho.

Saiu o machão, batendo a porta. Ela ficou muito tempo parada, sem atirar. Depois veio pensamento de destruição e morte. Foi ao quarto, pegou o pacote, abriu o fogão a lenha e despejou tudo lá. Abriu as janelas e portas, para sair o cheiro, e foi para fora de casa, esperar que queimasse. Tinha visto na gaveta o revólver do machão e tomou rumo. Entrou em casa,foi para a cozinha terminar de fritar os croquetes. Precisava entregar de manha. Arrumou todos eles bem devagar, pensando, revivendo todo o passado, a infância do filho, todas as esperanças que teve, toda a sua vontade frustrada. O sonho de um diploma, de um filho doutor. Na velhice, o doutor apresentando ela “Esta é minha mãe, que fez todos os sacrifícios por mim”. Ela feliz, sendo amparada pelo doutor.

Não lhe vieram lágrimas. Dirigiu-se — olhos secos e parados — para o quarto, pegou aquela arma nojenta e voltou com ela para a sala. Chegou bem devagar para perto do filho, aproximou-se, vergou-se e disparou todas as balas.

 

(Retirado da obra: Danças do caos, 1978)