Fragmentos
V – Os Paredões
(Os abismos)
Não conseguíamos permanecer o dia inteiro dentro do barracão, onde os gritos das crianças e, também dos adultos, machucavam nossos ouvidos. Nessas circunstâncias, viver em paz ali era impossível. Era preciso brigar e lutar por um lugar melhor.
A fome apertava.
Lá no meio da floresta havia um local com várias frutas silvestres: uma espécie de amora azeda e dura, pequeninas maças verdes, cogumelos e, até onde nossas vistas podiam alcançar, um mar de vermelhas e cheirosas framboesas. Quem tivesse açúcar poderia preparar gostosas geleias que, passadas no pão, eram uma delícia.
Éramos três jovens e combinamos arrumar finas redes para cobrir nossos rostos, como máscaras, e com algumas cestinhas e jarros nas mãos, numa tarde, penetramos na floresta. Incrível, quanto mais para dentro seguíamos mais frutas apareciam, num horizonte sem fim, como a pedir: “recolham o quanto puderem carregar”.
Estávamos contentes, e resolvemos não deixar passar a oportunidade. Comemos o bastante e só depois começamos a colher as frutas. As cestas das minhas amigas eram menores do que a minha, assim elas terminaram antes do que eu.
As horas passaram agradavelmente e depressa. De repente, percebemos que o sol já estava desaparecendo, iluminando com seus últimos raios as copas das árvores.
Não sei como aconteceu, mas eu tinha me perdido das minhas amigas e, subitamente, encontrei-me sozinha dentro da mata. Algumas vezes eu ouvia chamar o meu nome. Tive a impressão de que estavam perto de mim e eu queria ir ao encontro delas. Infelizmente, o eco me enganava e eu corria para o lado contrário de maneira a me distanciar mais ainda delas.
Reinava um grande silêncio na floresta, de vez em quando interrompido pelo canto de alguns pássaros. Eu estava assustada, nervosa e um medo terrível passou a me perseguir. Eu só podia ouvir o vento e o meu próprio eco: “uu-uu”.
Por fim, esgotada, pulando por sobre os troncos das gigantescas árvores derrubadas pelas tempestades, rasguei meu vestido. Minhas pernas sangravam de tanto me ferir nos galhos secos.
Meu Deus, o que eu podia fazer?
Do fundo do coração lamentei aquele passeio e irada quis abandonar tudo que colhi e me custara tanto esforço. Pensei que com as mãos livres fosse mais fácil sair dali.
Pouco a pouco começou a escurecer. A floresta mudou sua aparência e, em seguida, transformou-se num gigantesco e silencioso templo.
Cada folhinha delicada encerrava dentro de si um segredo sobrenatural. Olhei para cima e, através dos galhos emaranhados das árvores, vi como se apagavam os últimos traços de luz do sol, encobrindo a floresta, onde, sem dúvida, havia muitos animais ferozes, o que poderia acontecer? Pensando nisso, sentiu um arrepio. Quem sabe se na verdade não existiam aqueles ursos siberianos dos quais eu ouvira falar quando menina?
Ao longe ouvi um uivo de um chacal e do lado oposto um outro animal respondeu.
Minha cabeça estava confusa e todo o meu corpo tremia.
Meu Deus, pensei, dê-me muita coragem para não desmaiar.
Comecei, então, a andar esperançosa e logo saí num lugar descampado. Era uma clareira.
Um animalzinho cruzou rapidamente a minha frente dando um grito. Logo depois, de novo, reinava a calma no coração da selva, naquela noite de verão da Sibéria. Em seguida, cheguei a um local onde só vi muitas bases de árvores serradas. A lua surgia por trás de uma nuvem prateada.
Com passos seguros eu avançava pelo terreno. Pelo menos ali não havia o arvoredo barrando meu caminho. Eu estava certa que não encontraria o retorno. Olhei em volta. Aqui e ali havia uma porção de paredes estranhas, como um monumento no meio de um cemitério. Fiquei curiosa e, mesmo com a fraca luz, espantei-me ao perceber em todos os paredões perfurações de balas.
Diante deste quadro tétrico, fiquei com os cabelos arrepiados. Eu era testemunha de tudo aquilo e, de repente, compreendi toda a tirania daquele país. Justamente ali, onde o destino quis que eu me perdesse, nesses paredões, quem saberia quantas vidas foram tiradas? perguntei a mim mesma.
Como mausoléus, os paredões silenciavam o segredo, mas eu imaginava ouvir o choro intenso vindo das perfurações.
“Qual o pecado de toda aquela gente que mataram e por que matar milhares de inocentes?” eu me indagava.
Tal qual de uma peste perigosa, eu corri, fugindo daquele lugar, à noite, com o choro me perseguindo. Diante dos meus olhos surgia aquela visão pavorosa. Minha cabeça estava tonta e meus lábios doloridos diziam:
- Assassino! Destruidores! O que vocês fizeram com a humanidade?
Logo lembrei outra vez onde estava e gritei, pedindo por alguém que me ajudasse.
Meu tormento, desta vez, chegara ao fim, para minha satisfação.
Não muito longe dali vi uma silhueta, mas não me assustei. Mais perto, vi que era uma camponesa que aproveitara a noite não muito clara para pegar lenha. Aos que ali viviam não lhes era permitido pegar lenha na floresta e se um desses “ladrões” fosse apanhado seria multado. Por isso, faziam-no protegidos pela escuridão.
Para mim aquela mulher foi como um anjo mandado dos céus. Ela ouviu meus gritos e pediu que eu fosse até onde ela estava.
Imaginem só, eu estava a apenas alguns metros fora do meu caminho.
A noite reinava com sua envolvente profundidade, na selva, fazendo adormecer as árvores num leve e misterioso sono.
XV – A Miséria Aperta
(Os abismos)
Por incrível que pareça, todos aqueles sofrimentos resultantes de condições tão desumanas, que tanto eu como os outros sétimos até o fundo do coração, não deixaram em mim, naquela época, qualquer marca.
Os jovens costumam enfrentar o seu destino com destemor e não é fácil dobrá-los completamente. Mesmo com todas as desgraças que recaíam sobre a minha cabeça, eu desabrochava cada dia mais, como uma flor, apesar de estar num meio contaminado.
As conseqüências disso, porém, só foram sentidas anos mais tarde, a uma certa idade da vida. Por mais de ano e meio sofremos naquele distante kolkhoz, sentindo o restante do veneno do qual já havíamos provado o suficiente na Sibéria.
Um ano e meio de humilhações, opressões, fome, sofrimento com as epidemias, e outras desventuras que poucos seres humanos conseguem enfrentar. Durante todo aquele tempo não vimos um pedacinho sequer de pão, que era considerado coisa de luxo, e nós, pobres refugiados, nem podíamos sonhar com isso. Um pão preto e grudento custava de 150 até 200 rublos, o que era uma verdadeira fortuna.
Certo dia, Jacob pegou uma mala e a encheu com roupa de cama e mesa, que havia sido guardada para ser vendida nos dias mais negros, e foi para a cidade. Com o dinheiro que conseguiu, comprou um pouco de arroz e sal. Aliás, tínhamos muita necessidade desse último produto e, na maioria das vezes, precisávamos cozinhar totalmente sem ele.
A nossa maior alegria, porém, foi quando ele tirou um pão preto e o cortou em pequenas fatias, entregando uma a cada membro da família.
Garanto que nunca antes, nem mesmo mais tarde, um bolo teve um sabor tão gostoso quanto o daquele pão.
Quando a safra já estava toda colhida, veio o outono. Tiveram início os dias chuvosos e tristes. Tínhamos que passar semanas inteiras dentro das pequenas casinhas feitas de barro, onde não havia lugar em que a água não entrasse.
A gente não tinha como se esconder: pingava em cima da mesa, perto do fogão e, o pior, até na cama. Era horrível sentir aquelas gotas frias no rosto ou cabeça, enquanto se tentava dormir.
O único lugar na casa em que não chovia era uma faixa de meio metro perto da porta, porque ali o teto era mais espesso. Mas não cabiam todos os membros da família naquele pequeno lugar.
Uma outra coisa da qual recordo sempre é que tudo ali era feito de barro, casas e muros, e quando estes desmoronavam não se tinha mais abrigo.
Além de tudo, o pequeno moinho onde a cevada era transformada em farinha parou de funcionar, faltando, dessa maneira, o único produto que tínhamos para nos alimentar, pois comer a própria cevada era impossível.
A desgraça cercou-nos de todos os lados e não tínhamos a quem nos queixar.
Os diretores já tinham até uma resposta pronta:
- É tempo de guerra. Nossos próprios irmãos também sofrem passando fome, lutando no front, derramando o seu sangue e morrendo. Vocês estão aqui, longe daquele inferno, não enfrentaram a guerra e ainda se atrevem a reclamar!
Às vezes, quando os diretores estavam de mau humor, culpavam a gente por tudo e nos insultavam:
- Vocês são um bando de preguiçosos e sabotadores. Alimentamos vocês com o último pedaço de pão tirado das bocas do nosso povo e vocês agradecem dessa maneira?
Na Rússia, a outra pessoa é sempre um sabotador.
O nosso chefe Hakimof, que só sabia falar uma única palavra em russo – harachó!¹ - sempre bancava o bobo e fazia que não entendia nada quando reclamávamos para a diretoria. Na verdade, ele bem sabia do que se tratava.
Dos campos de batalha não chegavam boas notícias. As lutas eram sangrentas e o inimigo prosseguia sua marcha rumo a Moscou.
O pobre e escravizado povo usbeque, que antes dos comunistas possuia riquezas e muitos vinhedos em sua terra, ainda não havia se acostumado àquele regime rigoroso. Corriam rumores de que logo os alemães iriam chegar para livrá-los dos maus urus².
Quando alguém se afoga por seu grande desespero, não importa a ele se a salvação vem através do próprio diabo...
Hakimof, o nosso chefe, era um pobre coitado, meio idiota, e não tinha nada em comum com os outros usbeques, bem espertos. Sua própria aparência denunciava o tipo de homem que era: grosseiro, ridículo, sem educação nem juízo. Em resumo, era um animal em tudo e assim o chamávamos.
Não sei porque um sujeito como aquele foi escolhido para um cargo tão importante e que exigia tanta responsabilidade, que era o de comandar todo o trabalho no kolkhoz. Na verdade, o vice-diretor, que era ao mesmo tempo o chefe cultural e de agronomia, tinha mais poder que ele, que só sabia assinar o nome e assim mesmo com muita dificuldade.
Hakimof tinha um rosto enorme, quadrado, sempre vermelho de tanto tomar vodca pela qual daria tudo. Seus olhos eram pequenos e piscavam sem parar quando falava. Precisávamos nos conter muito para não rir dele enquanto falava, repetindo sempre a mesma palavra em usbeque e em russo: cakchi³, harachó.
Depois de falar, perguntava sempre a um assistente seu:
- Dla dide?4
¹harachó! – bom.
²urus – russos, na língua ubesque.
³cakchi – bom.
4Dla dide? – O que eles disseram? – também em ubesque.