Fragmentos
Palimpsesto
Raspa.
Rapa.
Garatuja.
Gangrena.
Rabulice da letra.
Verso rafado.
Anti-melótico rabeca.
O sentido vai-se embora no rabecão.
A rabiça nunca mais guiada por tua mão.
O racemo da voz não pára de brotar.
Da rachadura o clarão.
Da ranhura a marca -
ave de rapina na solvente madrugada.
De seu bico,
a raque do poema a rasourar.
A palavra fincou
suas farpas em mim.
Arranhou o meu rosto,
cuspiu em minha cara,
e eu,
recalcada,
receosa,
recolhi,
engoli
e agradeci
o seu ato.
De fato,
dela me farto,
dela me armo,
dela me mato
no aceito e bendito claustro.
Bem vinda
Oh! Clementina-palavra!
Tudo isso era a própria noite
A noite despida de cabelos
faz brotar um vasto anseio
como quando se sabe que as embarcações
iluminadas lá recriam o mar.
Sonhando acordada
percorro ruas solitárias,
olhos fechados a sentir o vento na cara.
É um tamanho desamparo
esse ressoar de folhas
sussurrando aos meus ouvidos
a nudez dos abraços que não tive.
Parece que visto de perto
não há como enxergar
todo esse não-saber enfurecido,
combusto em notas vagas,
colérico,
impetuoso de dúvidas,
oco de respostas.
Na avenida trêmula
eu bem me sinto despovoada
das promessas verbais que o silêncio quebranta,
esmorece e causa o pranto salgado,
tece em vão tua presença em mim.
Eis é o meu lícito lugar,
meu mais íntimo arco:
a cidade desabitada.
Eu no vento dissoluto.
Poeira
As coisas se perdem.
As coisas não são.
O que fica
tem a mácula do dia
e o frio da noite.
Há certas permanência sim,
há um cão que ladra,
pássaros afoitos,
oficinas, óculos de lentes rotas,
vestidos mofados no armário,
um espelho, a foto da avô,
algo de água, algo de mágoa
ou talvez tudo isso seja fé.
O traço da memória
cabe na palma da minha mão
e eu guardo a cor e o brilho da tua aparição
em caixas compactas, leves,
carregadas de tua febril sutileza.
Singular
Causas do dia,
rabo do dia,
parto da noite.
Em você quero me fiar
e tecer o que de fêmea existe
debaixo das axilas,
por entre as coxas e a virilha.
O corpo é como um baú fechado
e quando penso em você asas se retesam,
símbolos proliferam-se,
manhãs encaminham-se,
trajetos fartam-se de pernas e flores.
Sou a partição
que emana de tua natural matemática:
um.
Tua unidade é cavalo solto
e eu me fragmento em mil pedaços
quando teu cheiro me invade
e me (re)cria
uma.
(retirado da obra: Que transpõe o halo- Trilogia poética, 2010)