Fragmentos

Traço

Ocupe o mesmo espaço,
deixe sentir o que faço,
deite no meu regaço,
envolva-se no meu abraço,
sinta meu coração em compasso...
Imprima o seu traço!  

Impermanência

No mosaico das peles,
nas vontades esparsas,
ainda não comungadas,
passam águas do tempo
voçorocas entalhadas.
Saber decidir,
ser só passagem
Insistente de si.
Saborear o bolor,
sentir a vida num triz,
sangrar lágrimas,
pintar cada matiz,
perdoar o matador.
Ler da vida
as impermanências
da liberdade do eu,
da luz a mistura
de nós e transparências.
Amar a gama
do amálgama da alma.
Varar-se de vida
viver, ser vida
espelho jamais.

 

Querida Ângela

 

Aqui no jardin des Bagatelles sob o sol de primavera, num sábado pela manhã, tudo que vejo e sinto vem envolvido por você. Da última vez que nos falamos você me pareceu menos alegre ou com pressa.

Paris irradia cheiro de flores, beleza e um misterioso magnetismo iluminam esta cidade brilhante. Olho ao redor e vejo jovens caminhando de mãos dadas, bebês em carrinhos altos, mães jovens e mais maduras protegendo suas crias.

Crianças jogando bolinhas de gude e bola. O jardim abriga a todos num movimento vivo. Sinto-a no meu joelho, seu ombro no meu, seus sonhos pairam entre as árvores que se dobram. Você vive. É incrível que, mesmo com pouco contato, você seja tão real em mim. Sei que não posso me apoderar do que não me pertence. Você foi clara, mas meu coração é desobediente, rebelde e vai em outra direção: nem sabe outro caminho.

Com o tempo descubro essa maravilhosa mulher multifacetada, biônica. Viajante como eu, mãe, artista e com tempo para Deus.

Por enquanto sonho acordado com o possível que desejo. Desvende este sonho para mim. Minha solidão pesa, dói. Como é que você se sente? Ou será que eu a encontrei tarde demais? Impossível, porque você escorre em mim com paixão. Não é castelo de areia nem ilusão.

Nestes dias que passo em Paris quase não vejo o céu. Hoje foi uma exceção. Vivo trancado no escritório, entrando e saindo de reuniões. Antes eu não tinha em quem pensar e agora me pego sempre com você em variadas situações.

Meu sócio disse que ando tendo alguns lapsos. Dou risada e não digo nada. Por enquanto não quero dividi-la com ninguém. Só com você mesma. Meu irmão, minha cunhada e meus pais passam grande parte do tempo na Borgonha. E eu aqui, no escritório central, transferido para Paris depois de nossa vinda definitiva do Brasil. Tenho saudades daquela terra de calor, das praias, do colorido e do sol. Da areia fina que não tem nada a ver com a daqui. Daquele povo que se mistura num caldeu de raças sem se chocar. A verdadeira democracia do país nunca esteve no governo. E sim no povo que, sem preconceitos, se acolhe. O Brasil é um mistério, como você é para mim. Tão grande, tão bonito, tão difícil de conquistar. Mesmo assim, seguirei tentando.

 

Beijos, Marc

(Retirado da obra Mabi Manual de um amor impossível, 2004).