Fragmentos
Crônica – Carnaval de bonecas
A vantagem de envelhecer é que o passado torna-se um longo caminho pontilhado e recordações e a saudade é o veículo mágico que as traz até o presente, fazendo com que possamos reviver um momento feliz.
Como a nossa vida está sempre ligada à cidade em que vivemos, ela passa a fazer parte de nós e, assim, ao lembrar que a minha querida Curitiba esse ano completa 300 anos, eu comecei a lembrar a Curitiba de outrora, pequena, gostosa, que a gente podia brincar na rua sem o perigo de atropelamento, porque quando passavam seis carros, um atrás do outro, era casamento ou enterro, e fui buscar no passado o fato inédito e alegre que vale a pena recordar.
Sei que o ano foi 1935, mas já não recordo o mês; só sei que foi em um ensolarado dia de verão que ocorreu um acontecimento que surpreendeu e maravilhou a cidade que o acompanhou divertida: “um Carnaval de Bonecas”.
A grande idéia foi de minha prima Nilce, então uma menina como eu, logo aplaudida e aceita por todos.
Foram convidadas a participar todas as meninas da família e também as nossas amiguinhas.
Com entusiasmo começaram os preparativos, as mães se encarregaram de preparar as fantasias de nossas bonecas e também as nossas. Os carrinhos em que as bonecas deviam desfilar, puxados por nós, foram enfeitados. No auge do contentamento ajudávamos como podíamos, dentro do limite da nossa idade.
O quartel general, onde toda a ação se desenvolveu, foi a casa da minha tia Leonílda, à Rua Conselheiro Barradas, hoje Presidente Carlos Cavalcante.
O entusiasmo contaminou a família inteira, mais amigos e vizinhos, todos queriam participar. Contávamos que fosse um sucesso, mas não esperávamos tanto. Minha tia Gabrielinha tornou-se uma grande colaboradora, creio mesmo que foi quem tomou a direção de tudo.
Havia um amigo da família que trabalhava na Gazeta do Povo e através dele, ela conseguiu que o referido jornal, noticiasse o acontecimento. E a Gazeta foi talvez, a maior responsável pelo sucesso do Carnaval de Bonecas. Não só se prontificou a noticiar com destaque, como também, estendeu o convite a todas as meninas de Curitiba.
E foi assim que, no dia marcado, numa linda e ensolarada tarde, saía da Rua Conselheiro Barradas, o desfile do Carnaval de Bonecas.
Para nós, meninas, era uma coisa tão linda, tão linda, que quase não podíamos respirar de tanta felicidade. Puxávamos orgulhosas os carrinhos, exibindo as nossas “filhinhas” que iam lindas.
O cortejo seguiu pela Rua Mateus Leme até a Praça Tiradentes, contornou a Praça tendo parado em um determinado ponto, para uma fotografia do grupo, depois publicada pela Gazeta; e voltou pela Barão do Cerro Azul.
Além das bonecas, quase todas as crianças participantes foram fantasiadas. Minha irmã Carmem, tinha pouco mais de um ano de idade, minha mãe teve a idéia de fantasia-la de “O Fumaça”, personagem humorístico que aprecia diariamente no jornal “O Dia”, de autoria de Alceu Chichorro.
Assim ela desfilou de fraque, calça listrada, chapéu coco, bengala e um bigodinho, feito com rolha queimada. A característica estava perfeita, tanto assim que, no dia seguinte, Alceu Cichorro, o autor, agradecia ao “lindo garotinho” fantasiado de “O Fumaça”.
E Curitiba tornou-se a primeira e única cidade do mundo a realizar um Carnaval de Bonecas, um momento feliz que as participantes, hoje avós, jamais esqueceram.
Fragmento da crônica – Mãe Preta
“Como era lindo aquele quarto... parecia um pedacinho do céu. De toda a casa era o canto que ela mais gostava e era ali que se sentia feliz. Naquele momento uma ternura imensa invadia seu coração, entreabia os lábios num sorriso emocionado enquanto a mão afagava num gesto suave de carinho, a cabecinha loura do pequenino anjo que, já quase adormecido, sugava de seu seio o leite generoso que o tornava tão belo e forte, orgulho do sinhô e da jovem sinhá.
Seu pequenino sinhozinho... como ela o adorava, cuidava dele desde o momento e que nascera... era tão lindo!...
E enquanto esperava vê-lo adormecido para colocá-lo no berço deixou-se levar pelas leves asas do sonho.
Seu sinhozinho seria muito feliz, cresceria sempre rodeado de carinho e atenções. Era amado por todos, era vivo, inteligente, logo se transformaria em um garoto levado, esperto, e então o sinhô haveria de enviá-lo à Cidade Grande para que se transformasse em um moço estudado, talvez um doutor.
E voltaria... sim, voltaria... e nesse instante, ante a visão fantástica de seu sonho lindo ela sorria, sentindo o coração estufar de tanto júbilo e orgulhosa aconchegou mais o seio a criança já então completamente adormecida.
E a Mãe Preta, embalada em sua fantasia, continuou a sonhar. [...]”