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Fragmentos

“Um dia fiquei horas vendo um prédio arder. O amigo tentava me arrastar mas, fiquei até o final olhando. - Afinal, o que há? - ele indagou percebendo meus aprendizados de fuga. Nem respondi. Ele que cuidasse de mim como cuidava do fogo da lareira. Eu tinha objetivos novos e não era confiável. Às vezes, inocente como as chamas que ele controlava e que eram comportadíssimas, eu parecia útil e sossegada, assando castanhas, aquecendo ele, dourando a sala. Mas nada impedia o fogo de tentar alcançar cortinas, encontrar paredes ou escorregar pelo tapete. Cuidasse do fogo, ora. Cuidasse de mim”.

BENITEZ, Regina. Toda vermelha e dourada. Disponível em: <http://www.reocities.com/reginabenitez/todav.html>. Acesso em: 11 set. 2016.  

 

“Normalmente sou tímida. Desde o acidente, há muitos anos sou, tímida. Um corte feio, enorme, descendo da boca ao queixo. Depois de corrigido, uma cicatriz Tênue, quase imperceptível. Mas a lembrança da rasgadura, do susto, do sangue, traçou alguma coisa terrível lá por dentro e diante das pessoas, fiquei tímida. Tenho idéia de mim como de um excelente licor servido numa xícara. Uma xícara na qual existem lascas. Uma pequena xícara de porcelana rosada e lascada. Mas o licor está lá. Para quem se atrever, ele está lá. Para quem ousar. Mas apesar do licor, normalmente me comporto de forma tímida se olham para mim. Pelo telefone, entretanto, não existem cicatrizes. Sei que então sou extremamente fascinante. Uma pessoa culta. Li os clássicos e os modernos e me interesso por tudo. Consigo dar às conversas mais banais, direções inquietantes e tenho uma voz suave ao mesmo tempo que bem modulada. Esqueço as cicatrizes e ele, seduzido pela minha voz, pelo que digo, insiste naquele encontro, que até de comum acordo adiamos e adiamos, empurrando o dia para bem longe”. 

BENITEZ, Regina. Um dia lá longe. Disponível em: http://www.reocities.com/reginabenitez/umdiala.html>. Acesso em: 11 set. 2016. 

 

“Eu, ali, sozinho, assistindo o filme, quando no meio do maior duelo, do mais barulhento bang-bang, surgiram encarapitados no telhado do Saloon, aquela mulher com o avestruz. Percebi que eles conversavam e o mais inquietante: que falavam de mim. Pode?

Ela com corpete, retendo seios fartos, saias amplas e um toucado de rendas, brincava com a corrente dourada que se prendia no pescoço do avestruz. Tentei decifrar o que falavam. Não consegui. Terminado o filme ainda permaneceram na tela, por vastos segundos. Pensei que seriam tatuagens, quase eternos, mas, muito repentinamente sumiram.

A partir daquele dia, nunca mais conheci instantes de tranqüilidade. Fosse onde fosse, encontrava os dois. Às vezes na prateleira do supermercado, às vezes entre as estantes das livrarias até que invadiram a minha casa. Estavam na cama, na mesa, sempre espionando cada um de meus gestos e cada uma de minhas direções. Cochichavam e riam. Debochavam de mim. Incomodavam.”

BENITEZ, Regina. Mulher com avestruz. Disponível em: <http://www.reocities.com/reginabenitez/avestruz.html>. Acesso em: 11 set. 2016.