Fragmentos
Almas
(Entre águas)
De onde a intensidade do brilho captará toda nudez das emoções.
Eu estava sobre uma toalha branca de fino bordado. A mesa sustentada por colunas de madeira, onde fora esculpido um feixe de trigo, um peixe dourado, um cordeiro de olhos mansos, folhas de oliveira e um cacho de uva azul-escuro. Um livro grande de capa marrom repousava numa estrutura de metal entre os candelabros e as constelações de pétalas.
Chegou. Como se fosse um ser de espécie desconhecida. Serenamente calma pela benevolência do sol que a aquecera permitia-se estar ali como se flutuasse, sem preocupar-se com nada. Agradecia à sua forma sorridente, que mesmo sob as mais inescrutáveis provas, conseguia não deixar exumar-se.
Os cânticos eram acréscimos indulgentes aos ritmos próprios. Misturava-se à brancura dos castiçais e cálices ofertando o que tinha de mais sincero, permeando um depositário de anseios e graças alcançadas. A jovem mulher era comum, talvez mãe, e parecia que nada viera deixar ou buscar senão o bem de expor as extensões da vida, o mistério de existir, a força venerável da introspecção.
Percorreu as paredes. Havia nelas outras esculturas, retratando o mesmo homem em diferentes situações: tendo ao seu lado alguém que lavava as mãos, alguém que o ajudava a carregar seu fardo, uma mulher de longos e negros cabelos a beijar-lhe os pés. Gostaria de não dizer que viu o homem crucificado na penúltima. Na décima segunda ele aparecia entre nuvens e figuras voláteis, transparente e rutilante como um anjo.
“Bem aventurados os puros de coração porque verão a minha face, os pacíficos porque serão chamados meus filhos. Vosso pai sabe o que vos é necessário antes que vós lho peçais. Eu quero a misericórdia e não o sacrifício”. Cada palavra que auscultava era revolvida e tacitamente abnegada.
Segurou firmemente a mão da menina ao seu lado. Pousou uma carícia leve em seus cabelos anelados, nutrindo, fazendo crescer o sentimento como se lhe arrancassem uma porção cada vez maior da alma e findassem por subtraí-la totalmente. Confortava-se corajosamente para assumir a mais bela vitória, por mais morosa que parecesse, haveria de culminar no objetivo concretizado.
Um entrelaçamento carinhoso onde a eloqüência do amor não sucumbe à indiferença que reserva tão pouco de nobre, algo que seria mais do que uma referência de bondade uniria aqueles dois corações mais fortemente do que nunca. Uma frase fraturou a mudez e cobriu o chão: “Um pacto vos fita do alto”. Nunca mais foram as mesmas. Também não retornaram.
Por cerca de dois meses eu permaneci ali. Minhas pétalas se foram e com isso ganhei o jardim amplo dos fundos. Duvidava, com tristeza, que fosse possível renascer no meu novo lugar. O tempo foi passando. Fui regada e cultivada com esmero. De mim brotaram duas mudas muito verdes que alguém deitou em vasos de fibra de coco.
Busquei toda a energia das estrelas para tornar-me ainda mais exultante. No ano seguinte, já em forma de orquídeas florescidas, servi de presente a uma família. Realcei os recônditos da nova casa com todo idílio do mundo. Entre as roseiras avistei a mulher e a menina novamente como se fossem filamentos de mim mesma, revolvidos num espelho.
Entardecer na cobertura
para ariel tavares
o vento sopra nas coroas das palmeiras
o sal do mar se infiltra em todos os lugares
da pele à raiz dos cabelos
a noite diz boa noite mas não promete ser boa
haverá ressaca e a maré alta trará consigo
tudo o que puder arrebanhar
o braço da maré não é feito de moliços
nem de ossos
é feito da força líquida e invencível das gotas
o vento alucinante prospera
e a lua sopra suas mantas prateadas
então sobre as areias antes brancas
há manchas
nuanças de breu
daqui de cima não vejo tudo
embora escute o que imagino
o que me diz esse eu
desdizente
para ti, minha bela flor de caracóis,
sob o teu regaço de moça
o sargaço dessa mãe
extrema e nunca ausente
que te sente
porque te ama.
(http://www.blocosonline.com.br/literatura/poesia/obrasdigitais/saciedigpv/11/tere01.php)
Acorde
rememorar o brilho captado pelos olhos
que repousará num futuro
que talvez só exista fora da minha presença
emudecida no silêncio
porque não há esquecimento onde há ternura
enquanto insiste
o remanso tênue
que me fará lume nesse âmago
emoldurar na eficácia vã
uma íris líquida
transparências que abarco
numa bisnaga anfitriã
que torna menos espesso o pensamento
lépido como as esponjas de espuma que imaginei
recolher um dia numa ida às lisonjas do mar.
(http://www.blocosonline.com.br/literatura/arquivos.php?codigo=p10/p101040.php&tipo=poesia)