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Fragmentos

Do espaço 

Dia desses, uma amiga e eu saímos para almoçar, repetindo o que já havíamos feito em uma ou duas ocasiões anteriores: cuidadosamente, escolhemos algum lugar em que normalmente sequer pensávamos em entrar no dia a dia, acostumadas que estávamos a economizar para que o salário chegasse até o fim do mês. Minha amiga, mais extrovertida, mas insegura, esperava que eu descobrisse como funcionava o restaurante e fizesse o pedido, para só então fazer o seu. Eu, mais introvertida, mas com grande capacidade de vestir personagens, emulava certa classe unida a uma autoconfiança muito fingida, e, falsamente decidida, guiava minha amiga nos pedidos e no modo de agir.

Como crianças que brincam num mundo de fantasia, teatralizamos ações que não eram nossas, sentadas à mesa, esperando que nos servissem, enquanto falávamos trivialidades e fazíamos planos para o mês seguinte, o ano seguinte, a vida toda. Sentia-me – e sei que ela também – como uma estrangeira, que tivesse de aprender toda uma nova linguagem, um novo modus operandi, e eu me divertia com isso. Olhava ao redor imaginando que estava conseguindo enganar direitinho todas aquelas pessoas, que não suspeitariam que eu não pertencia àquele espaço. Minha amiga apenas dizia baixinho: “olha como a gente está chique hoje!”

A refeição chegou. Sorri, incrivelmente satisfeita. Estar ali tinha, para nós, um quê de subversivo, desafiador, como se estivéssemos infiltradas. Como se fôssemos agentes secretas, precisávamos manter o sorriso alinhado: um deslize e nosso disfarce cairia por terra. Comíamos, então, lentamente, mastigando bocados pequenos, saboreando sem alarde.

Ao final da refeição, porém, havia um silêncio. Sabíamos que esse não era nosso mundo. Sabíamos que, no dia seguinte, voltaríamos para o arroz com feijão dos restaurantes populares. “Ah! A gente merece, né!?”, minha amiga falava, de dentro de um sorriso largo, repetindo algumas vezes, talvez para se convencer, para nos convencer. E continuava: “é só de vez em quando... Aliás, a gente devia fazer isso uma vez por mês, se dar o direito, a gente trabalha tanto, é tão corrido, tão sofrido... A gente precisa se recompensar também.”

“Ah, sim... É só de vez em quando...”, eu concordava, tentando fazer com que o encanto inicial não se esvaísse. Agarrava o momento com as mãos fortemente fechadas, mas momentos são água que escorre entre os dedos. A magia ia pouco a pouco se apagando, os talheres cresciam, o garçom crescia, as bolsas e sapatos e roupas e anéis de mulheres e homens nas mesas ao redor cresciam. Ou talvez fôssemos nós, que imperceptivelmente nos apequenávamos de novo, lentamente expelidas daquele espaço que vociferava não ser o nosso, não ser o nosso, não ser o nosso.

Deixamos a mesa com um peso estranho sobre as costas, peso de séculos. Arrastamo-nos até o caixa, pagamos e saímos. À porta, num sobressalto, certa leveza nos reencontrou. Algo diferente do poder com o qual brincamos inicialmente, e diametralmente oposto ao peso e vazio que acabávamos de sentir. Era uma espécie de paz, um sentimento de destino alcançado, de missão cumprida. Foi como se, silenciosamente, tivéssemos percebido que nossa função não era mesmo habitar aquele espaço. Nosso lugar era justamente o da subversão. Poder ir e vir, conhecer os limites, as diferenças, poder ser agentes duplos – era essa nossa função no mundo. E, sem trocar palavra, sabíamos que nenhuma de nós, mesmo se pudesse, se restringiria àquele espaço. Não, nosso espaço não é fixo, nosso lugar é a própria mobilidade. Nosso espaço é o infinito.

(crônica publicada em O Diário do Norte do Paraná em 7 de novembro de 2015)