Fragmentos

Leminskiando
dia inteiro
perdi as horas
ou foram elas 
que me perderam?

...Ela me deu bom dia com um sorriso de Deus, que me lembrei que sou também obra da natureza, amada do Criador. Fiz um peelling de diamante no coração, passei o batom do perdão nos lábios, coloquei o brilho da dignidade nos olhos, passei o creme da solidariedade nas mãos, o esmalte da doçura nas unhas. Vesti meu velho Jaleco da paz, escolhi o sapato da delicadeza e sai para viver.

 

A poesia me salva

Literatura é minha máscara, meu nariz de palhaço

meu melhor disfarce

como o palhaço triste que esconde sua tristeza na arte do sorriso

na bondade de  semear alegria

escrever me entorpece, faz analgesia

me escondo nas entrelinhas

em versos sem rimas de dor e suspiros

sem luz, sem aquarela

ao fim uma janela

a poesia me salva

 

Censura

Calaram os versos

e eles seguiram para as bocas de lobos

agonizando junto à imundície humana

Segui-os de perto até se perderem

nos esgotos e se poluírem todos

que pena!

eles guardavam o segredo da alteridade

as senhas para ingressar no contexto

era o passaporte e  pretexto para poetizar

restou despeito

e rugas no olhar..

 

Entre flores e abrolhos

Neste tempo dos apressados, da velocidade estonteante,

Em que as novidades se amontoam, e nada mais, é igual à antes.

O que aconteceu ontem, ninguém mais lembra agora,

Desmanchou-se igual à nuvem de fumaça, na história.

 

Em um ritmo alucinado, as pessoas se acotovelando.

A tecnologia de hoje será obsoleta, ultrapassada amanhã.

A vida é escancarada nas redes sociais e vai se reinventando...

O mundo nu diante de si, sem fronteiras para exposição.

 

Nestes tempos de ímpetos enfurecidos, persisto na contramão,

Subindo ao céu, no embalo das nuvens, fugindo do chão,

Escrevendo meus versos, nos reversos da desventura,

Entre flores e abrolhos, no trote suave da literatura.

 

A vida passa ligeira, na sua efemeridade e dela nada levamos.

A morte rouba os sonhos e vem quando se menos espera,

É a coisa mais certa, e disso nem nos lembramos.

Afoitos em fazer fortuna, muitos não vivem, só passam por ela.

 

Poesia é pedra preciosa de amor

Poesia dá em árvore

nos pássaros e ninhos

dá na mata e na cidade

nos mares e navios

até na pobre lagoa

sem sapo, sem canoa.

Poesia é obra divina

é pedra preciosa de amor

incrustada na flor

na primavera de sorrisos

na cachoeira de lágrimas

na rua, na ponte e na estrada

é música de anjo

é tilintar de sino

é o jeito puro de criança

e esperança de menino

Poesia causa arrepios

é toque mágico de fada

carícia e paixão

é perfume de sonho

é namoro em botão

Tem cheiro de saudade

tem sabor de festa

tem a cor do arco íris

é  som de orquestra

é  o encontro do eu

e um beijo de Deus

 

Tarde de verão

A suave brisa da tarde

balança as folhagens verdinhas

das árvores soberanas e frescas.

 o sol deita  e tira um cochilo em suas sombras.

Nuvens passeiam preguiçosas

com vestes brancas iluminadas, pela imensidão azul.

Meu olhar se perde  entre pássaros e prédios

entre fios e pensamentos

da paisagem quente

por cima dos telhados folhas velhas se amontoam

a brisa delicada nem se importa, e adentra as portas

e janelas dos sonhos  e imaginação

Antenas e fios se entrelaçam

num abraço morno - sem beijo

sem lampejo - ainda é cedo

é tarde de verão

 

Urubuservando

Era um daqueles dias cheios de afazeres! Eu estressada e cansada, após uma noite mal dormida em que trabalhei até de madrugada para cumprir o prazo de entrega de um projeto literário. Eis que surge na minha frente um visitante nada amistoso.

Chegou imponente, batendo as enormes asas do lado de fora da vidraça fumê que dá de frente com meu escritório e pousou na sacada. Que susto! Olhou-me (sem me ver) o coitado. Ou seria coitada? Logo percebi que tinha audição, visão e olfato aguçados. A um leve clic ele se alterava. Permaneceu ali parado por algum tempo sem dizer nada.

Aprendi depois que eles são assim mesmo: não vocalizam, não avisam sua chegada, não costumam interfonar ou tocar campainhas. Vaidoso, posou para sair bonito na foto. Eu não podia perder aquele flash: o sinistro ali paradinho, como quem diz: Estou só urubuservando! ...

 

 Por nossa culpa, nossa máxima culpa

- Amor onde está minha gravata amarela?

- Não acho também meus óculos, viu onde deixei?

- Acha que devo usar o blazer azul marinho ou o preto? Não, nem vou tomar café, tomo na empresa. Ah, não me espere para o almoço! Logo após minha exposição, almoçarei com os diretores.

-Tem algum relaxante muscular ai? Parece que dormi sobre pedras essa noite!

Aquele começo de tarde, logo após o meio dia, tudo ficou negro e o céu desabou sobre minha cabeça. A impressão era de que o chão se abriu, me engolindo. Emudeci. Na garganta o nó apertado me afogava. Quando o desatei, o que saiu foi um aiiii longo, doído e depois um nãoooo que ecoou tremido. Rolaram lágrimas de fogo em minhas faces. Aquele choro que vinha desde meu ventre, me sufocava. Um choro cheio de porquês, de dor, de revolta, indignação...

Perdurou por muitos dias, anos... Como sobrevivi? Não sei. Talvez por ele, para que vivesse e pudesse pagar por sua culpa, por nossa culpa, nossa máxima culpa.

O vácuo se instalou naquele canto do coração em pedaços. Os cacos não se ajustaram mais ao quebra-cabeça. Restaram farpas que ainda espetam, mas após três longos anos, estou voltando à vida, apesar de tudo! Esta é uma ferida que não cicatriza, mas pelo menos já consigo falar no assunto. Acho que estou começando a me perdoar. Meu esposo ainda padece com a depressão profunda que desenvolveu, desde aquele dia tétrico.

- O bebê já está no carro. Está tão sonolento, mamou e capotou novamente. Coitadinho!

- Ande que já está atrasado! Avise a babá que talvez me atrase um pouco para pegá-lo. Tenho que passar no mercado

 

antes, pegar algumas verduras e frutas. Preciso estar na escola mais cedo, hoje. Aqui estão seus óculos!

- Obrigado amor, até a noite!

- Até. Vá com Deus e bom trabalho! Não corra!

- Obrigado amor, você também. Te amo!

...

- Bom dia, Julia!

- Bom dia, Sr. Henrique! Chegou cedo!

- Achei que estava atrasado! Os acionistas ainda não chegaram?

- Ainda não.

- Que ótimo! Então aproveitarei para dar uma passada na apresentação. Pode me ajudar com o data show?

- Sim, claro!

Henrique era publicitário e trabalhava para uma empresa multinacional. Tinha um elevado cargo, onde desenvolvia projetos de marketing para os produtos que ela mesma fabricava. Era um cargo de responsabilidade, que exigia muitas horas de trabalho exaustivo, dedicados à empresa. Muitas vezes levava na pasta trabalho extra, para fazer em casa.

Vivia sempre focado no trabalho e cheio de ideias! Só relaxava quando as transformava em realidade e eram apresentadas em grande estilo nas videoconferências.

- Belo projeto Sr. Henrique, parabéns!

- Obrigada Julia! Acho que extrapolei o horário. (ligando o celular).

- Sr. Henrique, sua esposa na linha três.

- Pode desligar ai Julia, diz a ela que já estou ligando do celular. Obrigada!

- Chamadas perdidas! Da babá?

- O bebê... Meu Deus, o bebê! (sai correndo).

A essa altura, não havia mais o que fazer...

- Sinto muito! Foram horas sem ar, ainda mais neste calor infernal do estacionamento!

 

Tortinha da Silva

Acordei naquele dia querendo comer algo gostoso. A princípio indecifrável, mas logo meus sentidos me revelaram de qual vontade eu padecia: Uma generosa fatia de torta de nozes - minha preferida. Aliás, a vontade foi crescendo com o passar das horas, que pensei que apenas uma fatia não seria suficiente. Após a missa das 10 (dez) convidei o marido para um café colonial; na cabeça a bendita fatia, ou fatias da torta.

Devido alguns bloqueios de avenidas no entorno da padaria escolhida, rumamos para a filial, que não tem o tal buffet colonial, mas tinha a tentada torta também. Com a mudança do trajeto, os planos gulosos alteraram também meu cardápio doce: Optei por omelete recheado e um duplo café expresso, apenas. Até olhei para uma calórica fatia de torta de nozes, mas achei financeiramente "salgada" e lembrei ainda, que a balança de casa anda me olhando enviesada.

O dia foi passando, entre um afazer e outro, fui olhar algumas fotos, alimentar a saudade. Coloquei umas em portas retratos e decorei com eles, alguns cantos da casa. O clima mudou e o friozinho sugeriu um mingau de aveia. Da torta de nozes, já tinha até me esquecido, mas, eis que rolando o mouse e navegando pela internet, ao anoitecer, me deparei com uma dita cuja, apetitosa fatia, daquelas de dar água na boca. Minha vontade adormecida, tortinha da silva, se aprumou novamente. O que fazer? Escrevi para esquecer e lembrei-me do que disse a imortal Cecília Meireles: "De que são feitos os dias?" E ela mesma responde: "de pequenos desejos, vagarosas saudades e silenciosas lembranças". Apesar da minha vontade do dia não ser um pequeno desejo, soquei ela no depósito das minhas lembranças e dormi.