Fragmentos
TEMOS 4 LIVROS DE AUTORIA PRÓPRIA
Encontro maior. Curitiba: O Formigueiro, 1982.
Graciette Salmon: a ciranda da estrela sozinha. Curitiba: Torre de Papel, 2003.
Para onde vão as andorinhas: relatos sobre as famílias Woellner, Andretta, Joslin e Valle, no Paraná. Curitiba: Imprensa Oficial do Estado do Paraná, 2002.
Luzes no espelho: memórias do corpo e da emoção. Curitiba: Torre de Papel, 2004.
TEMOS TEXTOS EM
SANTOS, Pompília Lopes dos. Sesquicentenário da poesia paranaense. Curitiba: Lítero-Técnica, 1985.
CENTRO PARANAENSE FEMININO DE CULTURA. Mulheres escrevem. Curitiba: Visagraf, 1997.
- PROSA (do livro “Loucura Lúcida”)
Duelo
A palavra ali estava, inerte, perdida no meio de tantas outras palavras, na folha insensível, apática, do dicionário. Fui eu que dei vida a ela, que a escolhi. Ganhou fôlego e, ingrata, de repente, decidiu assumir o comando. Insurgiu-se. Quis ser independente, senhora do seu destino. Agora não aceita mais o lugar onde a ponho. Ela se rebela, coloca-se onde quer que deseje. Tento dominar a palavra, para colocá-la naquilo que eu quero dizer, mas ela não aceita. Volta-se contra mim, que lhe dei vida; eu que lhe dei razão, que lhe dei motivo para aparecer, para se destacar no meio de tantas outras palavras, mas ela não aceita o meu domínio, a minha imposição, a minha força. Ela quer ter vida própria, ser independente. Criou autonomia. Não entra onde quero que entre e entra onde não desejo que ela fique. Descobri, então, que não sou eu que domino a palavra. Ela não se submete. Ela é que me tem. Acabo me tornando escrava da palavra. Preciso dela. Ela é imprescindível. Em vez de a palavra servir aos meus propósitos, eu é que sou conduzida por ela, para todos os caminhos. Ela passa a ser dona de mim. De autora da vida, torno-me escrava do que criei. A palavra se decompõe e se multiplica, para me azucrinar. Provocante, divide-se. Corro atrás da palavra, mas ela se esconde em suas partes. Deixa visível apenas uma letra, que me desafia. Aquele “O” tirano fica me olhando fixo, sem pestanejar. É um olho escancarado que quer enxergar minha alma, para ver até onde vai o meu desespero para reencontrar a palavra necessária. Tento livrar-me, buscando outra palavra, um sinônimo, mas ela é única. Somente ela se encaixa na minha emoção. Por isso se aproveita da minha dependência. Sem ela, não digo exatamente o que quero dizer. Fico capenga na expressão. E ela sabe disso. Não foi à toa que me jogou o “O” na cara. Olhando bem pra ele, descubro que ele parece uma bocarra desafiadora. É puro deboche, porque me vê impotente, submetida, submissa. Deixo o orgulho de lado e imploro. A palavra não se revela, continua escondida, atrevidamente oculta. Sempre a tratei com atenção, carinho. Por que ela se revolta? Ingrata é o que ela é. A irritação ameaça tomar conta. Torno-me agressiva. Rasgo tudo. Destruo registros, na tentativa de eliminar a frustração, a incapacidade de seguir adiante sem ela. Num relance, ela desfila diante da minha memória. Nem chega a deixar marca e foge outra vez. Corro atrás, persigo o sentido da palavra. Quero resgatar a ideia. Luta insana, inútil. A palavra vem quando quer. E quando ela quer, nem há necessidade de esforço. Ela se insinua, sensual, apaixonada pela função que exerce. Entrega-se, esfrega-se na frase, movimenta-se, provoca, atrai outras palavras, companheiras da mensagem. Passo a fazer parte do jogo. Não mais me debato; só me deixo arrebatar.
2. POEMAS
Som do silêncio
Parei
para ouvir o silêncio.
No som do silêncio,
a essência de todos
os inaudíveis sons.
Semeador
Em amoroso gesto,
espargiu sementes
no espaço.
Nasceram luzes
e floresceram estrelas...
A nós, delegou
o privilégio da colheita.
Tecelã
Costurei palavras,
retalhos colhidos
no baú dos devaneios.
Fiz, do manto-poema,
agasalho
das esperanças.
Incógnita
Crisálida estranha,
camaleoa,
nasci formiga,
cresci abelha.
Aprisionadas foram
a cigarra
e a borboleta.
Que bichos mais
habitam em mim?
Covardia
Olho a vida de soslaio,
como se tivesse medo
do que está escondido
por trás da porta do tempo.
Tenho a chave na mão
e o anseio da descoberta.
Só me falta é a coragem
para romper a cortina
do desconhecido.
Descendência
Ave desgarrada,
há muito, voo sozinha,
nesse espaço vazio,
em busca do ninho sonhado.
Já nem mais sei
quem sou.
Apenas descubro
que tenho por mãe a humanidade...
e o universo sabe que é meu pai.
Outro Tempo
Escrevo para outro tempo.
A página é selo:
guarda, encobre, protege,
mas também é passaporte
para envio da mensagem.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O destinatário ainda não chegou.
Escrevo para outro tempo...
Poesia
Pássaro arisco,
a poesia resiste à prisão
na gaiola-poema.
Libertação
Abri o cofre
e desvelei imagens ocultas...
Conquistei
o passaporte para a liberdade!
Alquimia
Respirou
lenta e profundamente...
Encontrou estrelas
no céu da boca
e fez, das palavras,
mensagens de luz.
Guerreira
Cansou da guerra interior
e de colecionar escalpos
das suas sombras.
A guerreira
vislumbrou outras paisagens.
Criou coragem
e saiu da floresta,
vestida de cigana.
Abriu a alma alegre
e se deixou bailar,
ao som da própria voz.
Herança
Óvulo da estrela
acariciado pelo sol,
fecundada fui
no útero da lua.
Sou filha do infinito.
Abandono
Velhas roupas penduradas...
Sonhos esquecidos,
mofando no armário.
Infinito em mim
Em tudo,
na semente,
a expressão do todo.
No poema,
resulto ser
criador e criado,
quando me permito
fundir-me com o universo
e perceber
o infinito em mim...
Prece
Eu queria cantar o mundo,
com voz bem afinada,
e fazer ressoar meu canto
em cada canto,
em cada estrada.
Eu queria tocar qualquer instrumento,
que vertesse som,
que fluísse música com harmonia
e fazer cada corpo vibrar
ao compasso da minha melodia.
Eu queria ser pintor,
espalhar cores, muitas cores,
manchar telas com habilidade,
retratar a natureza, os sentimentos,
alegrar olhos e almas
e transmitir paz, serenidade.
Eu pedi a Deus tudo isso,
pois queria enternecer corações,
encher a vida de alegria,
colorir pensamentos
e despertar emoções...
Antes mesmo de nascer,
eu pedi para ser esteta...
Ah! como eu pedi a Deus!...
Pedi tanto, tanto,
que Deus me fez poeta.
Caçador de estrelas
No espaço da noite,
projeto meu ser:
cavalgo cometas
e me transformo
em caçador de estrelas...
Concessão
... e Deus
pintou o céu
com as cores da noite,
só para permitir
possam ser vistas
as estrelas.
Conquista
Joguei o laço,
ajustei o nó;
apertei o espaço
e segurei o tempo.
Onde e quando
agora não existem.
Basto-me eu só,
na insistência
em viver...
Constelação
Na madrugada
transparente e fria,
no céu sobressaía
o Cruzeiro do Sul.
A emoção
compreendeu ser
cada estrela
a marca do toque
do dedo de Deus,
no corpo do infinito,
ao fazer
o Sinal da Cruz...
Entrega
Na quentura sonolenta
da areia,
as águas se entregaram,
molemente,
e até o vento dormiu.
Esboço
Às vezes,
me sinto
o esboço
de uma história
que começa
a ser escrita.
Fusão
Amalgamados no amor,
deixamos fluir a seiva
até às raízes
e fecundamos a terra.
Lembranças
Nosso ontem foi intenso,
incomparavelmente maior.
De tão imenso,
gerou lembranças
para todos os amanhãs.
Liberdade
Ser livre
é ser leve,
despojado do peso
de todos os apegos.
Poeta
Poema inteiro
é o Universo.
Poeta?
É o clandestino da poesia,
que se contenta
com pequenas viagens.
Regressão
Aprendi a tocar
os tambores da minha essência.
Em rituais atávicos,
os sons
despertaram meus enigmas.
Saudade
Passa, passa, passa o tempo,
passa a vida, devagar;
passa, agora, este momento,
passa a força e o chorar.
Passa o sol e passa o vento,
passa a alegria e o cantar.
Passa a dor e o sofrimento,
passa o real e o sonhar.
Passa o tormento e a bonança,
fica a emoção e o amar.
Também não passa a esperança
de a saudade ver passar...
Selvagem
Minha emoção
é um cavalo rebelde,
de pelos ruivos
e olhar de jabuticabas maduras,
que não quer ser domado.
Transformação I
Deitada na areia,
sou entrega absoluta,
me deixo penetrar
pelo cheiro
da água salgada
e me desmancho
em maresias...
Renascer
Regressar ao ventre do ovo,
viver a casca por dentro:
consciente, nascer de novo.
Repouso
Em derradeira explosão dourada,
o sol despede-se do dia
e encosta a porta da sua morada.
Saudade
O dia custou a passar.
Os grilhões da saudade
não deixaram a vida andar.
Viver
Não fui pedra; preferi ser semente.
Registros, rastros, marcas já deixei.
Nesta vida, não fui indiferente,
nem apenas só passei por aqui.
Chorei, sorri, cantei, sofri, amei...
Por isso é que posso dizer: vivi!
Alvorecer
A lua,
devagarinho,
deslizou no céu da boca
e desapareceu
na garganta do tempo,
que amanhecia.
Aceitação
Cansei de usar
força
e recursos,
na tentativa inútil
de alterar as coisas,
fora do seu tempo.
Manipulei minha ansiedade
e fui buscar
consolo
no regaço do tempo.
Covardia
Tenho a alma enrugada
de cansaço inútil,
porque sem lutas.
Sou feto encolhido,
dobrado no meu medo.
E não quero nascer.
Proteção
Estrela errante,
solitária,
bêbada de solidão,
balançou-se no espaço,
tropeçou no céu
e foi cair
no colo macio
do quarto crescente.
Tonta de espanto,
aconchegou-se
nos braços do luar.
Plenitude
A terra,
ressecada,
sedenta,
de repente estremece.
O temporal se aproxima,
rugindo,
fremindo.
Explode
e derrama
a água-sêmen,
que penetra
e se dilui
nas entranhas da terra.
Na satisfação do encontro,
a natureza se exaure
e exala
o cheiro
do amor consumado.
Poesia
Para que
imagens,
rimas,
métrica.
Poesia
é a vida!
Não sou poeta.
Pedras
Calçada de pedra,
pedra quadrada.
Passo pela calçada
com coração de pedra,
rosto de pedra,
alma petrificada.
Só vejo
calçada de pedra,
de pedra quadrada.
Espelho Opaco
A luz
reflete nas calçadas
molhadas.
A luz
não reflete
nos meus olhos;
eles são espelhos opacos.
Trama
Teço teia,
teço traço.
Nós da vida,
faço e desfaço.
De cansaço padeço
e na trama que enleia
me embaraço.
Teimosa, recrio
novos compassos;
me embalo
na teia e no traço
e me refaço.
Renasço...
Sabedoria antiga
A Velha Sábia
me ofereceu
onírico submarino
de fundo transparente.
Peixes escancaram
bocas,
revelando sorrisos misteriosos.
Celebro a vida,
no embalo das marés.
Uma sereia exibida
mostra o chão sereno
de areias infinitas,
origem da criação,
berço das metáforas.
Agora,
tudo é possível!
Frustração
Armei armadilhas.
Fiquei de tocaia.
. . . . . . . . . . . . . . . . .
Nem o vento passou.
Comemoração
Nos cadernos do tempo,
desenhei
os sinais de minh’alma.
Contornos de fantasias
impregnadas de loucuras,
sem culpas
ou desconsolos.
Solto sorrisos no ar
e o sol inteiro,
faceiro,
comemorando aniversário,
vem nascer
no meu olhar.
Nascença
Desvelei o silêncio,
para revelar a palavra.
Recolhimento
O eco de minha voz
voltou até mim
sem ressonâncias...
Guardei silêncio.
Êxtase
A luz
que orienta o caminho
é a mesma
que enfeita os meus olhos.
Deslumbro...