Fragmentos
QUARTO NÚMERO OITO: a felicidade
Não sei bem ao certo quantos metros cúbicos de chuva trago em minha cabeça embotada pela neblina contínua. Por aqui meu ofício só tem a função de memória. Talvez seja impossível medir, com precisão, o índice de grãos de areia que são arrastados diariamente pelos arredores. Dos tempos de trabalho, trago o aprendizado da tranquilidade e da transparência das águas. Ainda menino, ao lado de meu pai, na pequena carroça puxada por uma égua elegante, observava, com olhos curiosos, suas explicações sobre as nuvens. Entre as molecagens no meio do milharal, aprendi a reconhecer, no céu, as que traziam perigos para a colheita. Meu grande sonho era pintá-las, grudando seus cinzas na pele da tela. Como os outros guris, também gostava de ficar deitado sobre a terra vermelha. Iludíamo-nos vendo imagens de apóstolos, santos, monstros, mulheres bonitas, craques de bola, desenhadas por aqueles imensos volumes de fumaça branca no céu. Era quase frustrante quando, pela manhã, não detectava nenhuma nuvem no azul. A menor que fosse já me bastava. No verão ficava durante dias esperando, na rede da varanda, uma mancha branca tingir o céu. Quando uma chuva da estação nos surpreendia durante a madrugada, grudava os olhos na vidraça trincada de meu quarto para acompanhar com satisfação os movimentos das nuvens entre clarões de um raio e outro. O difícil era suportar calado, no dia seguinte, as dores das chineladas que minha mãe me dava, recompensando o ato que eu julgava corajoso. Durante quase cinco anos, acompanhei meu irmão mais velho até a cidade para vender a colheita. A estrada era puro barro. As patas do cavalo iam embrenhando-se na terra criando sulcos profundos. A carroça deixava atrás de si feridas incuráveis que somente um dia de sol cicatrizaria. Na cidade, o dono do mercadinho examinava com cuidado cada saca, medindo pacientemente o peso marcado pela enorme balança. (Anos depois voltei até lá e pude constatar que a balança não era tão grande assim como meus olhos de criança supunham). Outros dois empregados, negros de testas franzidas, empilhavam o carregamento. Mas, meu irmão, de caráter prático, impacientava-se. A veia italiana encravada no alto de sua testa inchava-se enquanto discutia com o pequeno homem que controlava a compra da produção na região. Não eram necessárias palavras, sabia que eu deveria sair dali e esperar na praça. Sempre chovia. No coreto de telhado desdentado, um sanfoneiro cego e um clarinetista baixo de chapéu preto tocavam marchinhas religiosas e algumas canções populares. Não importava a intensidade dos pingos, eles não cessavam o seu ofício. Quanto mais a chuva engrossava, o sanfoneiro sorria. Seu companheiro, impassível, passava do clarinete para o sax alto sem deter-se com qualquer índice pluviométrico. Nunca consegui aplaudi-los ao final de um show, pois meu irmão, sempre nervoso, me carregava embora antes da última performance. Lembrei da cena durante anos enquanto percorria estradas a trabalho. Nos dias de chuva, procurava pelos dois músicos na transparência da água. Não era em vão. Minha mãe sempre disse que os respingos da chuva que caíam na calçada junto à casa eram anjos que nos protegiam. Ela podia jurar que via as asas destes pequenos seres. Fecho os olhos e vejo com clareza os contornos dos pingos de chuva. Meus anjos da guarda da meteorologia pulando felizes coloridos de arco-íris. Eu sonho com esta chuva molhando meus cabelos áridos, minhas orelhas ressecadas pela areia, meus olhos encharcados pelo mormaço de ar. Ouço barulhos, trovões, relâmpagos clareiam o quarto. A tempestade nunca foi tão bem-vinda. Eu e meu irmão no meio do mato rezando para nos protegermos dos raios. Toco o livro sagrado em meu bolso esquerdo, como se tocasse um talismã, e desfio uma prece. Os torrões de chuva forçam a janela. A água sagrada da chuva. (Que benção para as estações meteorológicas!). Gerações inteiras de anjos da guarda aterrissam suaves sobre o solo. O cheiro de terra molhada da infância, o frescor das chuvas de verão. Eu ilumino o quarto com a minha felicidade. Os torrões de areia trincam a janela.
(Retirado da obra a estalagem das almas, 2006).