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Palavras de crítica, por Adriana Lopes de Araújo

A Estalagem das Almas (2006) é um livro composto a quatro mãos: os textos de Karen Debértolis e as fotografias de Fernanda Magalhães. O intuito, como esclarece a escritora em uma entrevista a Edney Silvestre para o programa Espaço aberto – Globonews, era trabalhar com textos e com histórias que fossem comuns a qualquer pessoa. Foi por apresentar um aspecto descritivo e imagético que a autora escolheu traduzir em imagens a narrativa e as sensações presentes no texto.

A primeira narrativa da escritora, A Estalagem das Almas, impulsiona um verdadeiro trânsito pelos labirintos da mente humana. Tal cortejo atua como a metáfora do purgatório do ser. Neste sentido, a narrativa parece permear as verdades humanas e a condição do Eu, desvelando, assim, seus estados de alma. Na assertiva da escritora, a obra

representa o mundo contemporâneo. Essa necessidade de se refletir o tempo todo, dessa sinuca que tem virado um pouco o mundo, tanto nas questões mais práticas da vida, nas questões relacionadas ao meio ambiente, como nas questões mais das emoções, mais dos estados de espírito, espiritual mesmo. Então eu acho que essa estalagem simboliza um pouco essa crise desse mundo contemporâneo (DEBÉRTOLIS, 2007).

Verifica-se no texto de Debértolis a ideia do ser fragmentado da Pós-Modernidade, com a sondagem de suas indagações mais profundas - em termos heideggerianos, da existência autêntica e da existência inautêntica.

Apesar de o romance ter sido construído no sentido de criar, mesmo no caos, uma linearidade, é possível pensá-lo dentro de um conceito e uma caracterização pós-moderna, já que se apresenta nos moldes de uma narrativa não tradicional, sendo entrecortada, não linear. Na diegese, a obra apresenta treze personagens que, dispostos em treze diferentes quartos de uma antiga estalagem, são observados pelo estalajadeiro local. Conforme o próprio narrador suscita, trata-se de um (não-)lugar em que “pobres diabos bruxas cientistas militares loucos mulheres e homens viveram seus últimos momentos de loucura” (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 20).

É possível reconhecer entre os hóspedes dessa estalagem alguns aspectos de ordem comum. Nesse mergulho no abismo surgem relatos diversos acerca de experiências, inquietudes, amarguras e indivíduos que fizeram parte de suas vidas. Entre estes se destaca, aqui, a presença de diferentes representações do feminino que se referem tanto ao plano da narração, enquanto um narrador feminino, quanto a figuras que habitam um inconsciente masculino, enquanto lembranças e digressões.

Assim expõe a personagem do estalajadeiro:

Aqui se ama, se odeia, se definha, se enlouquece, se morre. É a última chance, a última parada antes do deserto. Estão cravados pelas paredes, corredores, azulejos, frestas desta casa, histórias de civilizações estranhas... professores de latim, mulheres depravadas. (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 15).

 

Para ele, as figuras femininas que marejam dessa estalagem correspondem, também, a mulheres devassas, corrompidas, impuras, longe de pertencerem ao ideal do patriarcalismo, sistema sempre esteve calcado em práticas autoritárias. Dessa maneira elas agem na contramão de um construto histórico em que a mulher é vista como o “outro”, ou seja, como reflexo de uma dominação masculina marcada por opressão e marginalidade. A posição que as define, assim, é a de sujeito. Essa caracterização, contudo, remete à ideia de que os perfis de mulher de A estalagem das almas não se referem apenas a meras reproduções dos anseios masculinos, mas sim, a de mulheres que usam de seus ardis na tentativa de desenredar uma tradição patriarcal. 

A obra de Debértolis traduz o contemporâneo, o pós-moderno tanto na estética como no conteúdo. Entre eles estão as imagens que se integram à narrativa formando um todo, o enredo fragmentado e o dominado “segundo sexo”, que evoluiu para a combativa “mulher liberada” do feminismo histórico. Eis como isso ocorre: tanto as personagens femininas como as masculinas são fruto de uma realidade fragmentada, vazia de sentido. A escritora vai além do próprio enredo para representar essa instabilidade, e realiza um mergulho nos interstícios da própria narrativa, ancorando-se em sua estrutura. Ao posicionar as personagens em diferentes quartos e utilizar a imagem como complemento da palavra escrita, a autora passa a evidenciar uma subversão das regras que compõem a narrativa tradicional, como a unidade, a linearidade e a continuidade. Essa transgressão da escrita usual contribui para reafirmar o caráter libertário e inovador da literatura.