Fortuna crítica
A representação da mulher no romance contemporâneo de autoria feminina (dissertação)
Palavras da crítica, por Adriana Lopes de Araujo
"A Estalagem das Almas (2006) é um livro composto a quatro mãos: os textos de Karen Debértolis e as fotografias de Fernanda Magalhães. O intuito, como esclarece a escritora em uma entrevista a Edney Silvestre para o programa Espaço aberto – Globonews, era trabalhar com textos e com histórias que fossem comuns a qualquer pessoa. Foi por apresentar um aspecto descritivo e imagético que a autora escolheu traduzir em imagens a narrativa e as sensações presentes no texto.
A primeira narrativa da escritora, A Estalagem das Almas, impulsiona um verdadeiro trânsito pelos labirintos da mente humana. Tal cortejo atua como a metáfora do purgatório do ser. Neste sentido, a narrativa parece permear as verdades humanas e a condição do Eu, desvelando, assim, seus estados de alma. Na assertiva da escritora, a obra representa o mundo contemporâneo. Essa necessidade de se refletir o tempo todo, dessa sinuca que tem virado um pouco o mundo, tanto nas questões mais práticas da vida, nas questões relacionadas ao meio ambiente, como nas questões mais das emoções, mais dos estados de espírito, espiritual mesmo. Então eu acho que essa estalagem simboliza um pouco essa crise desse mundo contemporâneo (DEBÉRTOLIS, 2007).
Verifica-se no texto de Debértolis a ideia do ser fragmentado da Pós-Modernidade, com a sondagem de suas indagações mais profundas - em termos heideggerianos, da existência autêntica e da existência inautêntica.
Apesar de o romance ter sido construído no sentido de criar, mesmo no caos, uma linearidade, é possível pensá-lo dentro de um conceito e uma caracterização pós-moderna, já que se apresenta nos moldes de uma narrativa não tradicional, sendo entrecortada, não linear. Na diegese, a obra apresenta treze personagens que, dispostos em treze diferentes quartos de uma antiga estalagem, são observados pelo estalajadeiro local. Conforme o próprio narrador suscita, trata-se de um (não-)lugar em que “pobres diabos bruxas cientistas militares loucos mulheres e homens viveram seus últimos momentos de loucura” (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 20).
É possível reconhecer entre os hóspedes dessa estalagem alguns aspectos de ordem comum. Nesse mergulho no abismo surgem relatos diversos acerca de experiências, inquietudes, amarguras e indivíduos que fizeram parte de suas vidas. Entre estes se destaca, aqui, a presença de diferentes representações do feminino que se referem tanto ao plano da narração, enquanto um narrador feminino, quanto a figuras que habitam um inconsciente masculino, enquanto lembranças e digressões.
Assim expõe a personagem do estalajadeiro:
Aqui se ama, se odeia, se definha, se enlouquece, se morre. É a última chance, a última parada antes do deserto. Estão cravados pelas paredes, corredores, azulejos, frestas desta casa, histórias de civilizações estranhas... professores de latim, mulheres depravadas. (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 15).
Para ele, as figuras femininas que marejam dessa estalagem correspondem, também, a mulheres devassas, corrompidas, impuras, longe de pertencerem ao ideal do patriarcalismo, sistema sempre esteve calcado em práticas autoritárias. Dessa maneira elas agem na contramão de um construto histórico em que a mulher é vista como o “outro”, ou seja, como reflexo de uma dominação masculina marcada por opressão e marginalidade. A posição que as define, assim, é a de sujeito. Essa caracterização, contudo, remete à ideia de que os perfis de mulher de A estalagem das almas não se referem apenas a meras reproduções dos anseios masculinos, mas sim, a de mulheres que usam de seus ardis na tentativa de desenredar uma tradição patriarcal.
A obra de Debértolis traduz o contemporâneo, o pós-moderno tanto na estética como no conteúdo. Entre eles estão as imagens que se integram à narrativa formando um todo, o enredo fragmentado e o dominado “segundo sexo”, que evoluiu para a combativa “mulher liberada” do feminismo histórico. Eis como isso ocorre: tanto as personagens femininas como as masculinas são fruto de uma realidade fragmentada, vazia de sentido. A escritora vai além do próprio enredo para representar essa instabilidade, e realiza um mergulho nos interstícios da própria narrativa, ancorando-se em sua estrutura. Ao posicionar as personagens em diferentes quartos e utilizar a imagem como complemento da palavra escrita, a autora passa a evidenciar uma subversão das regras que compõem a narrativa tradicional, como a unidade, a linearidade e a continuidade. Essa transgressão da escrita usual contribui para reafirmar o caráter libertário e inovador da literatura.
No quarto número um, intitulado “o desejo”, o narrador-personagem rememora fatos ocorridos com ele em uma noite anterior. Coloca em primeiro plano sua experiência com uma mulher com a qual manteve relações sexuais. Assim ele a descreve: “alguém bate à porta com toques suaves de dedos ágeis e leves. A mulher de meus sonhos traz consigo tâmaras secas. Entra pisando com seus pés delicados e tira suas luvas azuis que atira sobre a cama: um convite.” (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 23). A figura feminina que emerge da cena desnuda traços de sensualidade, é a mulher amante ou sensual descrita por Pravaz (1981). Para a autora, esse perfil de mulher é “a luz que atrai, que mostra veredas insólitas, que incita ao movimento ao despertar paixões” (p.58). Ela apresenta características bem definidas e refere-se a uma mulher cujo território é o da relação com os homens. É a partir do corpo enquanto instrumento de poder que a personagem feminina do quarto número um conquista o ser masculino. Ela possui o corpo como seu aliado e utiliza-se da aparência física para conquistar o outro. Sendo assim, a personagem existe enquanto permanecer bela e atraente aos olhos do ser masculino, já que seu papel é o da sedução.
As relações interpessoais são representadas no quarto número um como nos outros cômodos, os quais revelam as relações amorosas como efêmeras. O sexo é visto de modo animalizado e instintivo, sem muitos vínculos afetivos, como ilustra o seguinte trecho do quarto um: “Desliza a mão por meu sexo umedecido, suga seivas dos seios, lambe com desespero insano minhas orelhas. Multidões aplaudem o enlace de pernas, corpos e líquidos na cama velha que se impacienta a cada movimento” (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 23). Tal fragmento responde ao ato sexual. O corpo, aqui, transmite diretamente o desejo. A banalização do sexo é marcante na Pós-Modernidade , e também se faz presente quando o narrador masculino refere-se à prática do sexo vulgarizado e discriminado pela sociedade patriarcal através de expressões/metáforas consideradas pornográficas ou imorais, como sexo umedecido e líquidos na cama velha.
No quarto número três, denominado “a loucura”, evidencia-se também um narrador masculino. Tal personagem responde à preocupação da existência de um tempo linear que se esvanece. Ao reconhecer sua existência no tempo e compreender que sua vida está chegando ao final, o personagem passa a refletir sobre sua existência e sobre a sociedade em que está inserido. Eis um trecho elucidativo: “Estou em meio a uma terra estranha de homens que caçam mulheres com longos vestidos de pele de animais e retiram de seus úteros filhotes de ursos”. (DEBÉRTOLIS, 2006, p.28). Ao afirmar que está em uma “terra estranha”, entende-se que a personagem não faz mais parte daquele meio. Seu ângulo de visão permite enxergar e questionar aspectos das relações humanas que desnudam as regras de poder - no caso, da dominação masculina. Nas teias da dominação masculina, o ser feminino apresenta-se frágil. “São pálidas figuras ao lado das dos grandes homens”, no dizer de Simone de Beauvoir (1980, p. 30). Apesar disso o narrador-personagem consegue posicionar-se de forma crítica em relação a esse estado de coisas, ou seja, do modo de pensar e agir de uma sociedade hegemônica masculina.
O quarto número quatro, chamado “o desespero”, traz à tona um narrador que se descreve como um guerrilheiro fugitivo. Em seu confronto existencial, recorda-se de atos perversos que cometeu, como o de ter torturado e matado pessoas e de ter estuprado mulheres. Na fala do narrador: “Submeti minhas amantes a todo tipo de vergonha. Comprei escravas brancas e negociei a preço de mercado. Há muitos anos tenho sido fugitivo de minha própria vida”. (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 31-32). A personagem masculina é construída como a de um ser que adota para si as verdades de uma classe dominante, ou seja, que se reconhece como superior, caracterizando-se por sua concepção tradicional sobre as relações de gênero. Durante sua trajetória enquanto guerrilheiro, compreendia a mulher somente enquanto mero objeto do prazer masculino, sujeitando-a a uma ideologia de dominação.
A narrativa do quarto número seis se diferencia da dos demais quartos por dar voz a uma personagem protagonista feminina que expõe os conflitos de seu relacionamento amoroso: “O amor é um defeito. Somos insanos. Nos entregamos irracionalmente ao prazer, nas noites de estrelas, juntos na cama. Nos deleitarmos com os carinhos das mãos que passeiam avidamente pelas dobras e reentrâncias do corpo”. (DEBÉRTOLIS, 2006, p.37). A personagem narradora é descrita como uma mulher que mantém um relacionamento sem esperanças com seu companheiro. A narrativa não deixa pistas sobre se eram ou não casados, mas o que se verifica é que a personagem tem sua afirmação como sujeito.
Ela demonstra estar cansada dessa relação amorosa: “Na noite anterior, havíamos discutido sobre problemas de incompreensão emocional. Você me dizia ao final de cada frase: Oh! OK baby! Não sabia ainda, mas meu olhar já tinha ultrapassado o vidro da janela e quebrado os limites das possibilidades de visão”. (DEBÉRTOLIS, 2006, p.38). Nessa passagem a personagem se mostra indiferente ao marido, já não prestava atenção ao que ele dizia, o que demonstra um desgaste da relação amorosa.
A personagem situa-se entre a razão e a insanidade. Comete um ato súbito e violento contra seu companheiro, assassinando-o: “a adaga ferina conduziu minha mão em direção à sua garganta sibilante. O sangue misturou-se aos mistérios de areia trazidos pela tempestade...” (DEBÉRTOLIS, 2006, p.38). Ao reconhecer o que havia feito, a personagem se apavora, porém passa a fingir que nada aconteceu. É como se, mesmo diante da culpa, ela se sentisse aliviada por se ver livre daquele que a enfadava.
A personagem encontra na morte do companheiro a possibilidade de redescobrir sua identidade, que outrora permaneceu oculta na estrutura patriarcal. No presente contexto, tem-se a procura desesperada da narradora/personagem por sua autenticidade e independência, que representa o sujeito ativo. Trata-se da fase fêmea descrita por Xavier (1999) que consiste na autodescoberta, na busca da personagem feminina por uma identidade própria.
No quarto número nove, mais uma vez a mulher é descrita na perspectiva de um narrador masculino. Ela é descrita de forma idealizada, como um ser belo e elevado: “tinha medo que a qualquer momento ela mudasse de ideia e me abrisse à porta dos fundos insinuando um adeus definitivo... nada mais valia do que aquela mulher... por seus pés macios, pelos seus seios perfeitos, pelas costas cobertas pela cabeleira ruiva” (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 49). A cena em tela exibe uma inversão dos papéis tradicionais demonstrando que o homem também pode possuir inquietudes, amores platônicos. O narrador expõe, portanto, uma desconstrução desses estereótipos de gênero que caracterizam somente a mulher como frágil e sonhadora.
O narrador-personagem exerce a profissão de escritor, enquanto ela é florista em uma loja de conveniências. Tiveram um romance que não perdurou, mas seu sentimento pela moça parecia ainda aprisioná-lo. Nesse caso, a emoção suplanta os papéis tradicionais de gênero e a narrativa desperta para o significado por detrás da profissão de escritor e de florista. Por trabalhar com o ficcional, o escritor imerge em um ambiente psicológico, volta-se para o campo da inspiração, da subjetividade, ao criar novas histórias, daí ele idealizá-la. Por outro lado, a florista está acostumada com o cotidiano, com o real, o que se torna um motivo para o romance não continuar, pois um é a negação do outro. O término do relacionamento, embora sofrido, pôde fazê-lo aprender com seus erros e renascer para um novo romance.
O décimo quarto é uma sondagem das experiências sexuais. A mulher, aqui, é valorizada pelo corpo e sua capacidade de ser desejada pelo homem. Tem-se, assim, novamente a figura feminina da mulher sensual. Em relação à mulher tida como amante ou sensual, “o corpo deverá cumprir suas funções comerciais: cartão de visita, forma excelsa de apresentação, promete altas vantagens ao comprador”. (PRAVAZ, 1981, p. 89). É na relação sexual e na reprodução que o corpo da mulher impõe seu registro específico, que pode ser representado como instrumento passivo ou lugar de contestação.
O quarto número doze, intitulado “a passagem”, traz a figura da mulher como um ser mitológico. Ela aparece representada pela metáfora da figura da morte:
Tenho as pernas cansadas e a pele enrugada. Morro. Não morro mais. Ela vem pesada e cruel. Vestidos de cetim, perfume, aragem. E seu cheiro passa perto e forte. Mas, sempre me esquivei porque me ensinaram que devo respeitar uma dama mais velha. Porque sempre soube de sua face horrenda sob o véu preto. Vou e volto... Eu sei que ela me espia. (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 61-62)
A mitologia grega atribui à velha das Parcas a missão de cortar o fio da vida quando soa a hora inscrita no Livro do Destino. As três irmãs são apresentadas na obra como velhas e com um aspecto severo. Atropos, a mais velha, aquela que não pode ser evitada, veste roupas negras e lúgubres, representando a personificação da morte. A representação feminina que emerge do quarto doze traduz uma inversão dos papéis preestabelecidos de dominação, em que a existência do ser masculino torna-se dependente da escolha feminina metaforizada como a morte. É ela a responsável pelo destino do homem, por manter sua trajetória ou pôr-lhe um ponto final.
Outra imagem feminina recorrente na estalagem é a da mulher barbada, sendo citada no início da narrativa pelo estalajadeiro com quem se casa: “Dormi com homens, casei com a mulher barbada e fugi com o circo” (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 16). A barba é normalmente considerada uma característica secundária masculina, portanto, a mulher barbada pode ser representada simbolicamente como uma manifestação contrária aos padrões de feminilidade vigente, que acomoda os indivíduos nos modelos preestabelecidos e que define, também, quem possui voz e vez na sociedade.
As personagens femininas da narrativa são representadas, em sua maioria, a partir do ponto de vista masculino, e ora são idealizadas, ora posicionadas de uma forma subalterna, como objeto da dominação masculina. O que chama atenção é que, além de não possibilitar um maior acesso à descrição das personagens, a obra de Debértolis tem um aspecto que a diferencia dos demais textos analisados, que é o de apresentar narradores majoritariamente masculinos, dando voz somente a uma narradora. Por outro lado, tais narradores masculinos são os que se apresentam mais frágeis, com mais inquietações, ao contrário da narradora, que se revela mais objetiva em suas convicções.
A obra de Debértolis evidencia um discurso de representação da sociedade contemporânea dotado de identidades flutuantes, conforme Bauman (2005). A autora demonstra que as representações das personagens - tanto masculinas como femininas - na sociedade pós-moderna não são estanques como o eram no Iluminismo, mas representam a terceira concepção de identidade descrita por Hall (2006), que é a do sujeito fragmentado, que não possui uma identidade fixa, estável ou permanente.
Sendo assim, a determinação de papéis predeterminados acaba sendo desconstruída. Cumpre salientar também o pensamento de Compagnon (2003) que é o da importância de observar a representação como um princípio ideológico, de verificar como são refletidas as perspectivas sociais em um meio e época específicos. Sendo assim, embora as narrativas de autoria feminina, inclusive da literatura paranaense como demonstraram os resultados quantitativos da pesquisa, apresentem uma maior proporção de protagonistas mulheres, o romance analisado aponta para a compreensão de que o homem ainda se encontra no centro do discurso na sociedade contemporânea
Karen Debértolis é verbete no Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras, de Nelly Novaes Coelho. Participou de coletâneas Helena Kolody (1991) e 12 – Antologia de Poetas Londrinenses (2002) e do livro Jornalismo no Cinema (2002), organizado pela jornalista Christa Berger. Além disso publicou textos nos jornais literários Nicolau e Suplemento de Minas (Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais), bem como nas revistas Ideias, Germina, Coyote, Medusa, Proa da Palavra e Novos Talentos em Literatura.
A Estalagem das Almas (2006) é um livro composto a quatro mãos: os textos de Karen Debértolis e as fotografias de Fernanda Magalhães. O intuito, como esclarece a escritora em uma entrevista a Edney Silvestre para o programa Espaço aberto – Globonews, era trabalhar com textos e com histórias que fossem comuns a qualquer pessoa. Foi por apresentar um aspecto descritivo e imagético que a autora escolheu traduzir em imagens a narrativa e as sensações presentes no texto.
A primeira narrativa da escritora, A Estalagem das Almas, impulsiona um verdadeiro trânsito pelos labirintos da mente humana. Tal cortejo atua como a metáfora do purgatório do ser. Neste sentido, a narrativa parece permear as verdades humanas e a condição do Eu, desvelando, assim, seus estados de alma. Na assertiva da escritora, a obra representa o mundo contemporâneo. Essa necessidade de se refletir o tempo todo, dessa sinuca que tem virado um pouco o mundo, tanto nas questões mais práticas da vida, nas questões relacionadas ao meio ambiente, como nas questões mais das emoções, mais dos estados de espírito, espiritual mesmo. Então eu acho que essa estalagem simboliza um pouco essa crise desse mundo contemporâneo (DEBÉRTOLIS, 2007).
Verifica-se no texto de Debértolis a ideia do ser fragmentado da Pós-Modernidade, com a sondagem de suas indagações mais profundas - em termos heideggerianos, da existência autêntica e da existência inautêntica.
Apesar de o romance ter sido construído no sentido de criar, mesmo no caos, uma linearidade, é possível pensá-lo dentro de um conceito e uma caracterização pós-moderna, já que se apresenta nos moldes de uma narrativa não tradicional, sendo entrecortada, não linear. Na diegese, a obra apresenta treze personagens que, dispostos em treze diferentes quartos de uma antiga estalagem, são observados pelo estalajadeiro local. Conforme o próprio narrador suscita, trata-se de um (não-)lugar em que “pobres diabos bruxas cientistas militares loucos mulheres e homens viveram seus últimos momentos de loucura” (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 20).
É possível reconhecer entre os hóspedes dessa estalagem alguns aspectos de ordem comum. Nesse mergulho no abismo surgem relatos diversos acerca de experiências, inquietudes, amarguras e indivíduos que fizeram parte de suas vidas. Entre estes se destaca, aqui, a presença de diferentes representações do feminino que se referem tanto ao plano da narração, enquanto um narrador feminino, quanto a figuras que habitam um inconsciente masculino, enquanto lembranças e digressões.
Assim expõe a personagem do estalajadeiro:
Aqui se ama, se odeia, se definha, se enlouquece, se morre. É a última chance, a última parada antes do deserto. Estão cravados pelas paredes, corredores, azulejos, frestas desta casa, histórias de civilizações estranhas... professores de latim, mulheres depravadas. (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 15).
Para ele, as figuras femininas que marejam dessa estalagem correspondem, também, a mulheres devassas, corrompidas, impuras, longe de pertencerem ao ideal do patriarcalismo, sistema sempre esteve calcado em práticas autoritárias. Dessa maneira elas agem na contramão de um construto histórico em que a mulher é vista como o “outro”, ou seja, como reflexo de uma dominação masculina marcada por opressão e marginalidade. A posição que as define, assim, é a de sujeito. Essa caracterização, contudo, remete à ideia de que os perfis de mulher de A estalagem das almas não se referem apenas a meras reproduções dos anseios masculinos, mas sim, a de mulheres que usam de seus ardis na tentativa de desenredar uma tradição patriarcal.
A obra de Debértolis traduz o contemporâneo, o pós-moderno tanto na estética como no conteúdo. Entre eles estão as imagens que se integram à narrativa formando um todo, o enredo fragmentado e o dominado “segundo sexo”, que evoluiu para a combativa “mulher liberada” do feminismo histórico. Eis como isso ocorre: tanto as personagens femininas como as masculinas são fruto de uma realidade fragmentada, vazia de sentido. A escritora vai além do próprio enredo para representar essa instabilidade, e realiza um mergulho nos interstícios da própria narrativa, ancorando-se em sua estrutura. Ao posicionar as personagens em diferentes quartos e utilizar a imagem como complemento da palavra escrita, a autora passa a evidenciar uma subversão das regras que compõem a narrativa tradicional, como a unidade, a linearidade e a continuidade. Essa transgressão da escrita usual contribui para reafirmar o caráter libertário e inovador da literatura.
No quarto número um, intitulado “o desejo”, o narrador-personagem rememora fatos ocorridos com ele em uma noite anterior. Coloca em primeiro plano sua experiência com uma mulher com a qual manteve relações sexuais. Assim ele a descreve: “alguém bate à porta com toques suaves de dedos ágeis e leves. A mulher de meus sonhos traz consigo tâmaras secas. Entra pisando com seus pés delicados e tira suas luvas azuis que atira sobre a cama: um convite.” (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 23). A figura feminina que emerge da cena desnuda traços de sensualidade, é a mulher amante ou sensual descrita por Pravaz (1981). Para a autora, esse perfil de mulher é “a luz que atrai, que mostra veredas insólitas, que incita ao movimento ao despertar paixões” (p.58). Ela apresenta características bem definidas e refere-se a uma mulher cujo território é o da relação com os homens. É a partir do corpo enquanto instrumento de poder que a personagem feminina do quarto número um conquista o ser masculino. Ela possui o corpo como seu aliado e utiliza-se da aparência física para conquistar o outro. Sendo assim, a personagem existe enquanto permanecer bela e atraente aos olhos do ser masculino, já que seu papel é o da sedução.
As relações interpessoais são representadas no quarto número um como nos outros cômodos, os quais revelam as relações amorosas como efêmeras. O sexo é visto de modo animalizado e instintivo, sem muitos vínculos afetivos, como ilustra o seguinte trecho do quarto um: “Desliza a mão por meu sexo umedecido, suga seivas dos seios, lambe com desespero insano minhas orelhas. Multidões aplaudem o enlace de pernas, corpos e líquidos na cama velha que se impacienta a cada movimento” (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 23). Tal fragmento responde ao ato sexual. O corpo, aqui, transmite diretamente o desejo. A banalização do sexo é marcante na Pós-Modernidade , e também se faz presente quando o narrador masculino refere-se à prática do sexo vulgarizado e discriminado pela sociedade patriarcal através de expressões/metáforas consideradas pornográficas ou imorais, como sexo umedecido e líquidos na cama velha.
No quarto número três, denominado “a loucura”, evidencia-se também um narrador masculino. Tal personagem responde à preocupação da existência de um tempo linear que se esvanece. Ao reconhecer sua existência no tempo e compreender que sua vida está chegando ao final, o personagem passa a refletir sobre sua existência e sobre a sociedade em que está inserido. Eis um trecho elucidativo: “Estou em meio a uma terra estranha de homens que caçam mulheres com longos vestidos de pele de animais e retiram de seus úteros filhotes de ursos”. (DEBÉRTOLIS, 2006, p.28). Ao afirmar que está em uma “terra estranha”, entende-se que a personagem não faz mais parte daquele meio. Seu ângulo de visão permite enxergar e questionar aspectos das relações humanas que desnudam as regras de poder - no caso, da dominação masculina. Nas teias da dominação masculina, o ser feminino apresenta-se frágil. “São pálidas figuras ao lado das dos grandes homens”, no dizer de Simone de Beauvoir (1980, p. 30). Apesar disso o narrador-personagem consegue posicionar-se de forma crítica em relação a esse estado de coisas, ou seja, do modo de pensar e agir de uma sociedade hegemônica masculina.
O quarto número quatro, chamado “o desespero”, traz à tona um narrador que se descreve como um guerrilheiro fugitivo. Em seu confronto existencial, recorda-se de atos perversos que cometeu, como o de ter torturado e matado pessoas e de ter estuprado mulheres. Na fala do narrador: “Submeti minhas amantes a todo tipo de vergonha. Comprei escravas brancas e negociei a preço de mercado. Há muitos anos tenho sido fugitivo de minha própria vida”. (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 31-32). A personagem masculina é construída como a de um ser que adota para si as verdades de uma classe dominante, ou seja, que se reconhece como superior, caracterizando-se por sua concepção tradicional sobre as relações de gênero. Durante sua trajetória enquanto guerrilheiro, compreendia a mulher somente enquanto mero objeto do prazer masculino, sujeitando-a a uma ideologia de dominação.
A narrativa do quarto número seis se diferencia da dos demais quartos por dar voz a uma personagem protagonista feminina que expõe os conflitos de seu relacionamento amoroso: “O amor é um defeito. Somos insanos. Nos entregamos irracionalmente ao prazer, nas noites de estrelas, juntos na cama. Nos deleitarmos com os carinhos das mãos que passeiam avidamente pelas dobras e reentrâncias do corpo”. (DEBÉRTOLIS, 2006, p.37). A personagem narradora é descrita como uma mulher que mantém um relacionamento sem esperanças com seu companheiro. A narrativa não deixa pistas sobre se eram ou não casados, mas o que se verifica é que a personagem tem sua afirmação como sujeito.
Ela demonstra estar cansada dessa relação amorosa: “Na noite anterior, havíamos discutido sobre problemas de incompreensão emocional. Você me dizia ao final de cada frase: Oh! OK baby! Não sabia ainda, mas meu olhar já tinha ultrapassado o vidro da janela e quebrado os limites das possibilidades de visão”. (DEBÉRTOLIS, 2006, p.38). Nessa passagem a personagem se mostra indiferente ao marido, já não prestava atenção ao que ele dizia, o que demonstra um desgaste da relação amorosa.
A personagem situa-se entre a razão e a insanidade. Comete um ato súbito e violento contra seu companheiro, assassinando-o: “a adaga ferina conduziu minha mão em direção à sua garganta sibilante. O sangue misturou-se aos mistérios de areia trazidos pela tempestade...” (DEBÉRTOLIS, 2006, p.38). Ao reconhecer o que havia feito, a personagem se apavora, porém passa a fingir que nada aconteceu. É como se, mesmo diante da culpa, ela se sentisse aliviada por se ver livre daquele que a enfadava.
A personagem encontra na morte do companheiro a possibilidade de redescobrir sua identidade, que outrora permaneceu oculta na estrutura patriarcal. No presente contexto, tem-se a procura desesperada da narradora/personagem por sua autenticidade e independência, que representa o sujeito ativo. Trata-se da fase fêmea descrita por Xavier (1999) que consiste na autodescoberta, na busca da personagem feminina por uma identidade própria.
No quarto número nove, mais uma vez a mulher é descrita na perspectiva de um narrador masculino. Ela é descrita de forma idealizada, como um ser belo e elevado: “tinha medo que a qualquer momento ela mudasse de ideia e me abrisse à porta dos fundos insinuando um adeus definitivo... nada mais valia do que aquela mulher... por seus pés macios, pelos seus seios perfeitos, pelas costas cobertas pela cabeleira ruiva” (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 49). A cena em tela exibe uma inversão dos papéis tradicionais demonstrando que o homem também pode possuir inquietudes, amores platônicos. O narrador expõe, portanto, uma desconstrução desses estereótipos de gênero que caracterizam somente a mulher como frágil e sonhadora.
O narrador-personagem exerce a profissão de escritor, enquanto ela é florista em uma loja de conveniências. Tiveram um romance que não perdurou, mas seu sentimento pela moça parecia ainda aprisioná-lo. Nesse caso, a emoção suplanta os papéis tradicionais de gênero e a narrativa desperta para o significado por detrás da profissão de escritor e de florista. Por trabalhar com o ficcional, o escritor imerge em um ambiente psicológico, volta-se para o campo da inspiração, da subjetividade, ao criar novas histórias, daí ele idealizá-la. Por outro lado, a florista está acostumada com o cotidiano, com o real, o que se torna um motivo para o romance não continuar, pois um é a negação do outro. O término do relacionamento, embora sofrido, pôde fazê-lo aprender com seus erros e renascer para um novo romance.
O décimo quarto é uma sondagem das experiências sexuais. A mulher, aqui, é valorizada pelo corpo e sua capacidade de ser desejada pelo homem. Tem-se, assim, novamente a figura feminina da mulher sensual. Em relação à mulher tida como amante ou sensual, “o corpo deverá cumprir suas funções comerciais: cartão de visita, forma excelsa de apresentação, promete altas vantagens ao comprador”. (PRAVAZ, 1981, p. 89). É na relação sexual e na reprodução que o corpo da mulher impõe seu registro específico, que pode ser representado como instrumento passivo ou lugar de contestação.
O quarto número doze, intitulado “a passagem”, traz a figura da mulher como um ser mitológico. Ela aparece representada pela metáfora da figura da morte:
Tenho as pernas cansadas e a pele enrugada. Morro. Não morro mais. Ela vem pesada e cruel. Vestidos de cetim, perfume, aragem. E seu cheiro passa perto e forte. Mas, sempre me esquivei porque me ensinaram que devo respeitar uma dama mais velha. Porque sempre soube de sua face horrenda sob o véu preto. Vou e volto... Eu sei que ela me espia. (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 61-62)
A mitologia grega atribui à velha das Parcas a missão de cortar o fio da vida quando soa a hora inscrita no Livro do Destino. As três irmãs são apresentadas na obra como velhas e com um aspecto severo. Atropos, a mais velha, aquela que não pode ser evitada, veste roupas negras e lúgubres, representando a personificação da morte. A representação feminina que emerge do quarto doze traduz uma inversão dos papéis preestabelecidos de dominação, em que a existência do ser masculino torna-se dependente da escolha feminina metaforizada como a morte. É ela a responsável pelo destino do homem, por manter sua trajetória ou pôr-lhe um ponto final.
Outra imagem feminina recorrente na estalagem é a da mulher barbada, sendo citada no início da narrativa pelo estalajadeiro com quem se casa: “Dormi com homens, casei com a mulher barbada e fugi com o circo” (DEBÉRTOLIS, 2006, p. 16). A barba é normalmente considerada uma característica secundária masculina, portanto, a mulher barbada pode ser representada simbolicamente como uma manifestação contrária aos padrões de feminilidade vigente, que acomoda os indivíduos nos modelos preestabelecidos e que define, também, quem possui voz e vez na sociedade.
As personagens femininas da narrativa são representadas, em sua maioria, a partir do ponto de vista masculino, e ora são idealizadas, ora posicionadas de uma forma subalterna, como objeto da dominação masculina. O que chama atenção é que, além de não possibilitar um maior acesso à descrição das personagens, a obra de Debértolis tem um aspecto que a diferencia dos demais textos analisados, que é o de apresentar narradores majoritariamente masculinos, dando voz somente a uma narradora. Por outro lado, tais narradores masculinos são os que se apresentam mais frágeis, com mais inquietações, ao contrário da narradora, que se revela mais objetiva em suas convicções.
A obra de Debértolis evidencia um discurso de representação da sociedade contemporânea dotado de identidades flutuantes, conforme Bauman (2005). A autora demonstra que as representações das personagens - tanto masculinas como femininas - na sociedade pós-moderna não são estanques como o eram no Iluminismo, mas representam a terceira concepção de identidade descrita por Hall (2006), que é a do sujeito fragmentado, que não possui uma identidade fixa, estável ou permanente.
Sendo assim, a determinação de papéis predeterminados acaba sendo desconstruída. Cumpre salientar também o pensamento de Compagnon (2003) que é o da importância de observar a representação como um princípio ideológico, de verificar como são refletidas as perspectivas sociais em um meio e época específicos. Sendo assim, embora as narrativas de autoria feminina, inclusive da literatura paranaense como demonstraram os resultados quantitativos da pesquisa, apresentem uma maior proporção de protagonistas mulheres, o romance analisado aponta para a compreensão de que o homem ainda se encontra no centro do discurso na sociedade contemporânea".